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Transformações na intimidade e na política

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original:

* Cristina Câmara


Há alguns anos defendi minha Dissertação de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Sociologia do IFCS/UFRJ e este ano resolvi publicá-la devido a atualidade do tema em questão.


Em 1990, procurando definir o objeto de estudo da dissertação, deparei-me com o grupo carioca Triângulo Rosa, fundado em 19851. Acompanhei sua trajetória através de entrevistas, jornais, boletins do grupo, sua vasta documentação e os Diários da Constituinte, entre 1985 e 89, o que me permitiu retratar um momento peculiar da atuação do movimento de gays e lésbicas no Brasil. Além de problematizar o significado da expressão "orientação sexual" e a mudança de valores, nas esferas da intimidade e da política, suscitados por este grupo.


Um grupo organizado pode se deparar com desafios coletivos quanto à emancipação sexual, à ação política ou às denúncias de violência procurando oferecer respostas às discriminações e às exclusões sociais que sofrem os membros do mesmo. A resistência aos preconceitos, a valorização da auto-estima e da ajuda mútua cria elos entre os indivíduos e vincula diretamente a reivindicação do grupo aos anseios daqueles que dele participam.


Ao estarem conscientes das diversas esferas simbólicas que informam as concepções sobre a homossexualidade, os grupos organizados procuram saídas. Estas saídas visam romper com a lógica da repressão sexual, que é subjetivamente apreendida. A expressão orientação sexual oferece uma alternativa, neste caso com um caráter afirmativo porque é propositiva. Ela não só rejeita as associações entre a homossexualidade e as idéias de crime, pecado ou doença, mas possibilita a construção de um lugar socialmente possível para as relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo. Se os preconceitos são construídos simbolicamente, as respostas a eles precisam ocorrer no mesmo plano. Inegavelmente, o movimento organizado de gays e lésbicas cria novos valores ao introduzir no jogo concorrencial de imagens a idéia da orientação sexual. A orientação sexual retrata o lugar que o movimento ocupa e o diálogo que estabelece com seus interlocutores.


Orientação sexual é uma expressão de uso cada vez mais freqüente no Brasil, que indica uma referência identitária e/ou um modo de vida diretamente associado à sexualidade. Não se confunde com a idéia de opção ou preferência sexual por não se tratar de uma escolha consciente. É apreendida antes de mais nada como um desejo individual. Inicialmente de uso corrente na literatura gay, essa expressão gradativamente passou a ser assimilada pela literatura acadêmica mais ampla e pela linguagem jornalística. Especialmente nos grandes centros urbanos dos países ocidentais industrializados, nos quais o movimento de gays e lésbicas gera repercussões e já se consolidou como ator social no amplo leque das discussões democráticas, junto a grupos de indíviduos como o das mulheres e o dos negros.


A orientação sexual procura abranger as noções de homossexualidade, heterossexualidade e bissexualidade ao mesmo tempo que as redimensiona. A expressão ficou associada ao movimento de gays e lésbicas por ter começado a ser empregada e até reivindicada por ele, no entanto sua abrangência o ultrapassa e o amplia. As discussões internas ao movimento apresentam as vivências e reflexões de alguns indivíduos, mas se desdobram em possibilidades de novos caminhos para muitos outros e contribuem para um ambiente favorável à diversidade na vida em sociedade. Os movimentos sociais são espaços que retratam anseios individuais, de classes, de categorias, mas também podem oferecer projetos de sociedade baseados na liberdade, na igualdade e na justiça social. O movimento organizado de gays e lésbicas atende aos interesses de seus membros, mas também contribui para mudar as imagens que predominam sobre a homossexualidade e as situações preconceituosas e discriminatórias existentes.


No caso específico do Brasil, o debate sobre a orientação sexual ganha visibilidade em 1984, quando se discute a inclusão da mesma no Código de Ética do Jornalista. Nesse momento, não havia clareza por parte do movimento do porque da expressão orientação sexual. O Triângulo Rosa alimentou o debate suscitando a participação de outros grupos e fazendo consultas a diversos intelectuais. Procurava-se uma expressão com um caráter genérico, de uso corrente e que possibilitasse a inserção social da demanda do movimento organizado, por isto seu papel propositivo.


A expressão orientação sexual é apresentada, antes de mais nada, como sendo da ordem do desejo. Ou seja, ela implica num devir, num vir a ser que aponta em determinada direção, por isto os ativistas gays dizem que "a orientação sexual pode ser homossexual, heterossexual ou bissexual". De certa forma uma contradição, na medida em que o uso da expressão orientação sexual, ao frizar o plano inconsciente, retira as relações entre pessoas do mesmo sexo da noção essencialista presente na idéia de homossexualidade. A orientação sexual acentua o caráter individual e o cuidado de si, na medida em que valoriza o desejo próprio (mesmo que não exista a prática), que é construído socialmente e não o objeto do desejo. Entretanto, não se pode perder de vista que as referências simbólicas se superpõem e concorrem entre si.


Não se trata de um mero jogo de palavras, pois estas estão imbuídas de significados e precisam ser contextualizadas e levadas a demonstrar os limites a que estão sujeitas. No campo político e social observa-se a amplitude da expressão orientação sexual, que possui, por um lado, um aspecto que pode ser aproximado da noção de homoerotismo, resgatada por Jurandir Freire Costa, por outro, contribui na afirmação pública do debate introduzido pelo movimento de gays e lésbicas. A orientação sexual organiza ainda o debate interno ao movimento, informado no final dos anos 70 - quando a "bandeira" de luta era a emancipação sexual -, pela dicotomia ou, porque não, pela superposição entre o "ser homossexual" e o "estar homossexual". Há um esforço por parte de alguns indivíduos - que não querem ser aprisionados por uma identidade fixada, por vezes considerada tão sufocante ou mesmo discriminatória quanto a norma heterossexual - em buscar alternativas.


As relações sociais e afetivas mudam porque os indivíduos mudam e podem ser mais produtivos e criativos quando estão bem consigo mesmo. A orientação sexual oferece maleabilidade e ameniza ao longo dos anos o discurso do movimento de gays e lésbicas, proporcionando o aprofundamento das questões individuais e íntimas. A reflexão sobre a orientação sexual organiza simultaneamente a pluralidade e a tolerância na sociedade e no interior do movimento. O caráter genérico atribuído à orientação sexual abre o diálogo do movimento de gays e lésbicas com outros grupos organizados na sociedade. Grupos de indivíduos que não se identificam com este movimento, mas que podem ser solidários a ele.


A orientação sexual desvincula a abordagem sobre as relações sexuais e afetivas entre pessoas do mesmo sexo da necessidade de busca de uma origem, mesmo que haja uma constante atualização nos campos médico, religioso e jurídico. Continua sendo importante para alguns fazer uma releitura das escrituras e colocar a homossexualidade na pauta das discussões teológicas. Para outros, descobrir o gene da homossexualidade. Ou, garantir os direitos e liberdades da pessoa. Entretanto, ao ser utilizada a expressão orientação sexual o enfoque prioritário não é o que explica sua existência, mas que tipo de relações são estabelecidas a partir daí.


O processo da Assembléia Nacional Constituinte foi um momento exemplar do confronto entre as representações sociais de crime, pecado e doença associados à homossexualidade. Neste momento a demanda do movimento era incluir a orientação sexual como garantia dos direitos civis dos homossexuais no Parágrafo 1º da Constituição Brasileira, após a igualdade por "sexo". Os argumentos conservadores apontavam a demanda do movimento como esgotada na não discriminação por sexo. Assegurar os direitos dos homossexuais seria por em risco uma concepção de família e de educação "corretas", caracterizadas pelos princípios da monogamia e da heterossexualidade. Além disso, seria permitir o incentivo à homossexualidade, um ato contra a natureza. Os argumentos favoráveis, por sua vez, destacam a subjetividade como um componente importante na expressão dos direitos individuais e os referem aos princípios de liberdade e igualdade.


A orientação sexual aparece como um elemento de junção, na medida em que responde ao nível inconsciente, assim como pode ser apresentada na esfera pública, buscando o respeito às individualidades. Nesse sentido, a orientação sexual é múltipla, por isto mesmo não se confunde com as idéias de opção sexual ou preferência sexual, entendidas como escolhas objetivas, conscientes, racionais. A expressão orientação sexual organiza as referências subjetivas e objetivas, permite que o indivíduo se veja incluído no que ela representa e contribui no processo de subjetivação. Apresenta a demanda do movimento organizado como uma problemática a ser considerada. A orientação sexual consolida o momento da discussão sobre os direitos individuais no interior do movimento e a criação de um lugar simbólico para a expressão pública das relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo.


Em linhas gerais, analisei as discussões em torno de códigos e leis e atribui à expressão orientação sexual um papel central durante as reflexões que fiz a partir do percurso trilhado pelo grupo Triângulo Rosa.


- Informações sobre o livro "Cidadania e Orientação Sexual: a trajetória do grupo Triângulo Rosa" através da Editora Academia Avançada, com Sylvio de Oliveira - acad.avan@hotmail.com.


1 Para os que desconhecem o símbolo, os gays presos nos campos de concentração nazistas recebiam como distintivo um triângulo rosa com o vértice para baixo.


* Cristina Câmara é doutora em Sociologia pelo IFCS/UFRJ. Atualmente responsável pela Articulação com a Sociedade Civil e Direitos Humanos, na Coordenação Nacional de DST/Aids. Publiquei o artigo "Histórico das ONG/Aids e sua contribuição no campo das lutas sociais", em co-autoria com Ronaldo Mussauer, no Cadernos Abong, n. 28.





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