Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
É difícil mensurar a gravidade do problema do trânsito no Brasil. Existe uma carência de dados sobre acidentes, fruto de um processo difícil e lento de apuração pelos governos municipais e Departamentos Estaduais de Trânsito. E há mesmo divergências significativas nas estatísticas disponíveis. No site do Departamento Nacional de Trânsito, os números mais recentes referem-se ao ano de 2000 e indicam 13.747 mortes. Ainda segundo o Denatran, no primeiro semestre do ano passado, houve 7.732 mortes. Por outro lado, a Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados e Empresas de Capitalização, a partir de levantamento realizado por suas associadas, fala em 37.133 vítimas no ano 2000 e em cerca de 340 mil acidentes nas rodovias do país, para uma frota total – na época – de mais de 29 milhões de veículos. Consultado sobre a diferença, o Denatran não se manifestou até o fechamento desta edição. Os números do órgão governamental, no entanto, apresentam deficiências. Nas estatísticas de 2000, por exemplo, faltam informações sobre as vias municipais do interior do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais e Pernambuco.
A despeito de avanços como a criação do Novo Código de Trânsito Brasileiro, o problema ainda é bastante sério. Eduardo Junqueira Reis, diretor do Instituto de Mobilidade Sustentável Rua Viva reconhece que a segurança nas vias públicas brasileiras tem melhorado, mas afirma: “Quando comparamos o trânsito das cidades mais seguras do Brasil com as de Primeiro Mundo, os nossos indicadores são ainda duas ou três vezes maiores”.
Cuidado: crianças
Em relação às crianças, os dados são mais precisos: o trânsito – somados atropelamentos e ocupantes de veículos acidentados – é a causa número um de mortes de crianças de até 14 anos no Brasil. Em pouco menos de um ano no país, a organização não-governamental norte-americana Safe Kids, aqui denominada Criança Segura, investe na prevenção de lesões não intencionais em crianças nessa faixa etária. Particularmente em relação aos acidentes de trânsito, a entidade vem procurando investir em dois projetos. Um deles é o Criança Segura Pedestre, que consiste em um mapeamento de acidentes seguido de um esforço de conscientização em escolas. Camila Aloi, coordenadora regional da organização em São Paulo, explica: “O primeiro passo é identificar os focos de atropelamentos. Depois, verificamos qual a rua e qual o local de maior incidência. Então fazemos contato com as duas escolas mais próximas desse local e iniciamos um trabalho de informação e educação com as crianças, os professores e os pais”. Segundo Camila, as crianças são as melhores multiplicadoras e cumprem um papel importante em casa, cobrando naturalmente dos pais um comportamento responsável. O projeto tem duração de cinco meses, depois é levado para outro bairro. No momento, em São Paulo, mobiliza cerca de 3 mil alunos.
Outro projeto volta-se para o transporte adequado de crianças em automóveis. Aos sábados à tarde, uma equipe da Safe Kids visita uma concessionária de automóveis e monta um estande para levar informação aos pais. Os motoristas são recebidos e, enquanto se submetem à vistoria, seus filhos podem se divertir em uma área exclusiva para recreação. A primeira etapa da vistoria é a checagem da cadeirinha infantil, durante a qual é analisada a instalação da cadeira e sua qualidade. Quem chega sem a cadeira é encaminhado para a área de informação, onde são exibidos pequenos filmes educativos que mostram o que acontece num acidente de trânsito. Mais adiante, na área de demonstração, são exibidas cadeiras apropriadas e instaladas adequadamente. “É impressionante como as pessoas não têm informação. E uma criança tem 71% de chances de sobrevida em um acidente, se estiver sendo transportada de maneira correta”, diz Camila, que sonha conseguir levar esse projeto para os estacionamentos de shoppings, que são uma espécie de ponto de encontro dos paulistanos nos fins de semana.
Devagar: escola
Em seu artigo 64, o Código de Trânsito Brasileiro determina que as crianças com idade inferior a dez anos devem ser transportadas nos bancos traseiros. Camila, no entanto, lamenta que ainda falte informação aos motoristas. “Tivemos dados de lojas e fabricantes de cadeiras de que houve um aumento nas vendas. O problema é que muita gente ainda transporta errado e sem a devida proteção. Por isso o trabalho de informar e educar é tão importante”.
O Novo Código de Trânsito, implantado no início de 1998, teve um forte impacto em um primeiro momento. Considerado bastante avançado, contou com intensa divulgação na mídia e gerou polêmica. Com o passar do tempo, verificou-se que algumas leis não vingaram – como a que previa multas para pedestres – e que a “febre” das câmeras que fotografavam os infratores nas vias públicas arrefeceu. Edélcio Mezziolaro, coordenador do Instituto de Humanização do Trânsito e Transporte – entidade criada há cerca de um ano que procura humanizar os sistemas de transporte e incentivar práticas de cidadania – considera que o principal avanço do Código foi tratar o acidente de trânsito como crime. Mas adverte: falta difundi-lo nas escolas e auto-escolas. “É preciso que essas noções de cidadania no trânsito façam parte do currículo escolar”, propõe. O IHTT já realiza um projeto de produção e distribuição de livros didáticos para o Ensino Fundamental em escolas municipais de São Paulo. “Nossa expectativa é, conforme as possibilidades, transformar essa iniciativa em um projeto nacional”, diz ele. Para Edélcio, o problema principal é educação.
Via preferencial
Camila Aloi, da Safe Kids, concorda: “O processo educativo é muito lento, mas é só através da educação que a gente consegue uma mudança comportamental. No entanto a lei também é muito importante. Por isso a gente procura trabalhar em conjunto com políticas públicas. Tem que ser um trabalho paralelo à conscientização”.
Conscientização que, muitas vezes, falta a motoristas e pedestres. Há acusações de parte a parte sobre a responsabilidade de acidentes. Talvez ambos tenham razão. Até porque, em geral, os atores se revezam nos dois personagens. “A maior parte dos acidentes é por atropelamento. A pessoa que anda de carro esquece que também é pedestre. E usa seu carro como arma. O problema é que o pedestre também não se conscientiza e deixa de respeitar as leis. Sem falar na questão técnica da inadequação das soluções”, diz Edélcio, que cita como exemplo a inadequação de passarelas construídas longe dos pontos de ônibus.
Eduardo Junqueira, do Instituto Rua Viva, expõe o que chama de “visão não ortodoxa” sobre o assunto. Ele afirma que, para a sociedade, o uso do automóvel é natural, daí o senso comum de que o pedestre deve obedecer às leis do trânsito. O automóvel, segundo ele, transformou radicalmente a vida na sociedade moderna e tomou conta do espaço urbano. A passarela seria um exemplo do predomínio do automóvel sobre o homem, obrigando o pedestre a fazer um caminho maior para permitir a passagem dos carros. Para Eduardo, é o pedestre quem deve ter prioridade, até por ser o elemento mais fraco. “Devem ser oferecidas a ele condições de circular. O automóvel não é solução para o transporte urbano. É preciso investir em ciclovias e em sistemas que favoreçam andar a pé”, sugere.
Pontos de vista – ortodoxos ou não – à parte, em uma coisa Eduardo, Camila e Edélcio concordam: a educação é caminho obrigatório para a cidadania no trânsito.
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