Autor original: Fausto Rêgo
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Como se desenvolve a atuação política das organizações da sociedade civil? Ana Paula Moraes – formada pela Unicamp em Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia e Ciência Política – acompanhou o dia-a-dia da campanha “Rio, Abaixe Essa Arma”, organizada pelo Viva Rio, e procurou compreender o funcionamento de uma organização não-governamental, entender suas motivações e identificar suas peculiaridades. O resultado dessa reflexão está na em sua dissertação de mestrado pelo Museu Nacional/UFRJ, intitulada “’Rio, Abaixe Essa Arma’: um estudo sobre a forma de fazer política da sociedade civil”. A partir dessa experiência, Ana Paula produziu uma interessante reflexão sobre a constituição e a trajetória dos movimentos sociais brasileiros. E é sobre isso que ela nos fala nesta entrevista.
Rets – O surgimento das organizações não-governamentais, na década de 70, marca uma nova forma de fazer política, desvinculada dos partidos e mais próxima dos movimentos sociais. Você acredita que as mudanças ocorridas ao longo desses anos, quando as ONGs passaram de secundárias a protagonistas, se devem mais a "uma transformação no discurso dos intelectuais que fazem parte das ONGs", como você menciona em seu trabalho, do que a transformações ocorridas na própria sociedade?
Ana Paula Moraes – As duas coisas não são distintas. Os movimentos sociais surgiram durante a ditadura militar, como uma forma de reivindicação de carências sofridas, e tiveram uma grande presença de intelectuais. Muitos deles trabalhavam diretamente com esses grupos. A forma de organização dos movimentos sociais é que foi considerada inovadora, por três características principais. Primeiro por ter uma forma de organização popular, mais distante dos partidos políticos e formada por pessoas que não tinham nenhum envolvimento com a política partidária; outra característica era a heterogeneidade, seus membros eram pessoas de todas as classes sociais, que reivindicavam coisas como saneamento básico, direitos das minorias excluídas, questões ambientais etc.; e descentralizada, os membros dos diversos movimentos não se comunicavam entre si e não buscavam estabelecer uma rede onde pudessem reivindicar juntos e reconhecer as carências de outros grupos. Deparando-se com essa forma de organização e na tentativa de participar da política brasileira de uma forma diferente daquela dos partidos políticos e sindicatos, muitos intelectuais – em grande parte, exilados pela ditadura militar – passaram a reelaborar vários conceitos – como cidadania, sociedade civil, participação e a relação entre Estado e sociedade civil – para compreender aquela realidade que se apresentava. Paralelamente à compreensão dessa nova realidade, os intelectuais forneciam a estrutura institucional exigida pelo Estado e pelas agências financiadoras internacionais, interessadas em investir em ações comunitárias no Brasil. A principal justificativa dada pelos intelectuais para a formação das primeiras ONGs se refere justamente à necessidade de alguém que pudesse elaborar e coordenar os projetos. Nesse primeiro momento as ONGs e os intelectuais vinculados a elas funcionavam como assessores dos movimentos sociais, ficando em segundo plano e conciliando esse trabalho com a sua atividade acadêmica. Não era raro um intelectual usar o seu conhecimento de pesquisa junto a um determinado grupo para auxiliá-lo num projeto.
Rets – As organizações não-governamentais começaram a atuar em espaços abandonados pelo poder público. No entanto o que se vê hoje é um número cada vez maior de parcerias entre ONGs e o Estado e também um envolvimento cada vez maior de empresas privadas em iniciativas do terceiro setor. A que se deve essa nova postura?
Ana Paula Moraes – Acredito que isso se deva à idéia, cada vez mais forte na sociedade, de que o Estado perdeu legitimidade para atuar em alguns setores da sociedade, como por exemplo no que se refere às questões sociais. Nesse sentido, as ONGs são apontadas como instituições legítimas para a realização de ações nesse setor, tornando-se parceiras do Estado. As ONGs elaboram projetos que abrangem questões sociais detectadas como deficientes e o Estado fornece o suporte financeiro para que o projeto seja desenvolvido pela ONG.
Já as empresas privadas descobriram um meio de faturar, fazendo seu “marketing social” e agradando os seus clientes. Isso faz parte da visão de mundo atual, que cobra ações da sociedade civil, principalmente da classe média, no sentido de ajudar os menos favorecidos. A classe média ajuda como uma forma de “terapia”, como se assim ela se livrasse da culpa pelos excluídos que surgem como resultado do sistema econômico atual. É interessante analisar o discurso atual sobre política. O capitalismo está tão legitimado na sociedade que quaisquer discussões sobre modo de produção ou mudanças na estrutura econômica são consideradas paralisantes, por isso cabe à sociedade civil se organizar para suprir as carências dessa parcela da população, através da realização de projetos de assistência social que sejam capazes de diminuir essa situação, sem, no entanto, promover qualquer transformação mais profunda. Nesse sentido, empresas privadas e pessoas, individualmente, ganham destaque quando são solidárias. Para se ter uma idéia da dimensão dessa questão, é só observar que nos currículos das principais empresas é perguntado se o candidato é voluntário em projetos sociais – e isso é cada vez mais valorizado.
Rets – Como você analisa a crescente profissionalização das ONGs e, em contrapartida, a importância cada vez maior do trabalho voluntário?
Ana Paula Moraes – A importância do trabalho voluntário é cada vez maior porque a solidariedade, da forma como ela é apresentada atualmente, é uma característica cada vez mais valorizada, até mesmo na hora de procurar um emprego. No entanto, uma das constatações mais interessantes da dissertação foi a descoberta de dois tipos de voluntários participando das atividades da campanha. Aquele membro da classe média que, solidarizado com a situação de carência de alguns ou indignado pelo sentimento de violência, por exemplo, resolve se engajar num trabalho voluntário e doa parte do seu tempo ou recursos para as atividades da ONG é a forma mais conhecida de voluntário. Mas existe também aquele voluntário que o Viva Rio chama de Serviço Civil Voluntário, formado por jovens pobres do Rio de Janeiro. Esses jovens recebem treinamento, na forma de cursos profissionalizantes, e uma ajuda de custo do Viva Rio para atuar nas suas atividades e dos seus parceiros. Durante a campanha Rio Abaixe Essa Arma, esse foi o voluntário que participou mais ativamente do recolhimento de assinaturas, recebendo uma ajuda de custo para estar à disposição da campanha.
Já a crescente profissionalização das ONGs pode ser justificada pelo crescimento das mesmas nos últimos anos, sendo responsáveis por projetos cada vez mais sólidos e com resultados cada vez mais elaborados. Nesse sentido, o trabalho dos voluntários não dá mais conta das exigências dos projetos, pela necessidade de uma maior regularidade com relação às atividades. Por isso as ONGs passaram a procurar pessoas que pudessem realizar o trabalho com um caráter mais profissional. Por outro lado, a participação do trabalho voluntário é o que dá legitimidade ao trabalho de uma ONG, porque é ele que justifica o engajamento e a identificação das pessoas com a ONG, é ele que alimenta a idéia da participação da “sociedade civil organizada”.
Rets – O marketing e a mídia têm sido cada vez mais utilizados pelas organizações, e não apenas em campanhas, mas também na divulgação de suas atividades. Você acredita que essa é uma tendência irreversível?
Ana Paula Moraes – Acredito. Na realidade, o marketing e a mídia são os elementos que garantem a participação das pessoas nas atividades da ONG, é a participação das pessoas que garante a legitimidade das ONGs; além da importância da mídia em manter o tema da atividade em questão em destaque na sociedade. No livro “Cidade Partida”, Zuenir Ventura se refere à importância que o apoio da mídia teve na mobilização e na visibilidade da atividade de protesto do Viva Rio “Dê um tempo para o Rio parar para começar de novo”, com a participação dos principais jornais do Rio de Janeiro na divulgação do ato e dos seus resultados.
Rets – Que aspectos lhe chamaram mais a atenção durante o período de acompanhamento da campanha "Rio, Abaixe Essa Arma"?
Ana Paula Moraes – Além da questão do voluntariado, que foi uma das constatações mais interessantes durante a pesquisa, teve a profissionalização que envolveu a campanha. Várias foram as “frentes de trabalho” que se formaram para o seguimento da campanha e os coordenadores dessas frentes de trabalho geralmente eram profissionais contratados para realizar atividades específicas dentro da campanha. Outra coisa interessante é pensar que a maioria dessas organizações nasceu como reuniões entre amigos indignados com alguma situação e que, depois de alguns anos, se tornaram organizações sólidas, bem-estruturadas e desenvolvendo projetos complexos.
Rets – A partir da intensa vivência do dia-a-dia de uma organização não-governamental, é possível fazer uma análise do papel que o terceiro setor estará desempenhando nos próximos anos?
Ana Paula Moraes – É claro que a pesquisa realizada com uma única atividade de uma ONG não me legitima a falar sobre os rumos do terceiro setor, por isso eu gostaria de ressaltar a importância da realização de mais estudos sobre o tema, porque até agora poucos foram os estudos sobre a forma de atuação do terceiro setor, analisando os seus resultados. Mesmo o significado do termo ONG – organização não-governamental – é um tema pouco explorado, já que existe uma gama tão diversificada de instituições que adotam esse termo, que pouco acaba podendo ser dito sobre ele. Somente o estudo de diversas ONGs e dos seus principais aspectos vai poder dizer se o terceiro setor vai se firmar ou não.
Clique aqui para fazer o download da dissertação “’Rio Abaixe Essa Arma’: um estudo sobre a forma de fazer política da sociedade civil”.
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