Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
* Luiz Mott
A concessão de cotas como estratégia governamental de ação afirmativa em favor dos afro-descendentes (20%), das mulheres (20%) e deficientes físicos (5%) já é lei na contratação de novos funcionários nos Ministérios da Justiça e Reforma Agrária e, em proporções específicas, na seleção de alunos para o Itamaraty, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro etc. Trata-se, portanto, de uma tendência que deve se ampliar para outros setores, estados e, com certeza, incluir outros segmentos discriminados. Já não é mais questão de discutir os prós e contras das políticas afirmativas. As cotas já são lei, e os argumentos a seu favor foram mais convincentes. Democracia é assim. Se não derem certo, depois de alguns anos de aplicação e avaliação, compete à sociedade civil pressionar para que tal lei seja revogada. Antes de se experimentar empiricamente, não há como saber de sua eficiência como estratégia de superação das desigualdades acumuladas historicamente e que hoje dificultam estruturalmente aos grupos discriminados concorrer com igualdade de oportunidade ao lado dos demais cidadãos. Trata-se de uma medida de alcance imediato, a curto prazo, para em poucos anos capacitar novos profissionais também naqueles grupos que até agora não tiveram acesso a tais funções. Claro que medidas estruturais de longo alcance são igualmente imprescindíveis, permitindo que negros, mulheres, homossexuais, deficientes físicos, índios e demais minorias sociais tenham igualdade de acesso a todos os benefícios que hoje são privilégio da elite comanda pelos homens-brancos. E que políticas públicas afirmativas e legislação específica sejam implementadas no sentido de erradicar e punir o racismo, a homofobia, o machismo e demais preconceitos que impedem o acesso igual de todos à cidadania plena.
Diz a Constituição Federal que todos são iguais perante a lei. Ora, se as cotas e demais ações afirmativas visam corrigir as discriminações históricas contra os grupos socialmente mais vulneráveis, todos os grupos sociais vítimas de discriminação e que têm sua cidadania limitada devido a tais peculiaridades devem ter igualitariamente os mesmos direitos a se beneficiar das reparações legais. Portanto, já que os homossexuais de ambos os sexos constituem comprovadamente o segmento social mais discriminado na sociedade brasileira (posto que, diferentemente das demais minorias, os gays, travestis, transexuais e lésbicas sofrem gravíssimas violações de seus direitos dentro de casa, praticados pela própria família, ultrapassando em mais de 95% os homossexuais que, devido à opressão heterossexista, não ousam assumir e afirmar sua identidade sexual e estilo de vida diferenciado); já que o critério diferencial da implementação de ações afirmativas é exatamente o maior grau de apartação social que pesa sobre diferentes grupos sociais, nada mais justo e certo que os mais discriminados sejam os mais beneficiados, cabendo portanto aos homossexuais tratamento diferenciado, pois são comprovadamente os mais vitimizados em nosso país. Aliás, a própria Constituição Federal garante o princípio de isonomia: a igualdade de todos perante a lei. Se as cotas foram legalizadas para os discriminados, que todos, inclusive os GLT, tenham acessos igual a tais direitos.
A argumentação de que a implementação de cotas aos homossexuais abriria espaço para “falsos” homossexuais concorrerem a tais benefícios não é suficiente para descartar esta proposta afirmativa. Primeiramente, caberá aos verdadeiros gays, lésbicas e transgêneros se anteciparem na solicitação das cotas, o que redundará na maior visibilidade, reforço da auto-estima e afirmação de uma numerosa categoria social que faz da autonegação, da clandestinidade e da mentira seu estilo de vida. Do mesmo modo como deve funcionar com os afro-descendentes, o critério de seleção dos beneficiários das cotas deve ser a auto-identificação, e apenas em casos de dúvida em comprovação documental, no caso dos negros, a cor dos progenitores ou antepassados próximos, ou, até mesmo, exame do dna, nos casos mais polêmicos. No caso dos homoeróticos, a auto-identificacao como gay, lésbica ou transgênero deve ser suficiente para comprovar a orientação sexual. Porém, no caso de dúvida, provas documentais podem ser exigidas, como já faz o INSS para comprovar que o/a homossexual vivia relação estável com alguém do mesmo sexo, recebendo o benefício correspondente. Não vamos deixar de pleitear direitos fundamentais sob o argumento menor de que haverá fraudadores. Nestes casos, os grupos homossexuais organizados têm estrutura e criatividade para propor soluções a fim de equacionar tais problemas. Neste sentido, o Conselho Nacional de Combate à Discriminação aprovou em sua primeira reunião (18-12-2001) minha proposta de criação de um Conselho Nacional das Minorias Sexuais (nome e funções a serem discutidas), órgão que poderá, perfeitamente, estabelecer os critérios de comprovação da fidedignidade dos candidatos homossexuais e exclusão dos falsários.
Reivindicar cotas não é assumir postura vitimista, nem curvar-se ao paternalismo dos donos do poder. Trata-se de estratégia racional e justa, politicamente correta, pois visa corrigir distorções históricas, que sem discriminações positivas, ou, melhor dizendo, políticas afirmativas, tais desigualdades permanecerão por gerações infindáveis, perpetuando a mesma situação de desigualdade e injustiça, seguindo aquela injusta lógica evangélica: “A quem tem se dará, a quem não tem se tirará”. Quando os afro-descendentes divulgam, através de pesquisas fidedignas, que os pardos e pretos ocupam os níveis mais baixos de renda, emprego, qualificação, saúde etc., não estão sendo vitimistas, mas realistas, pois as estatísticas comprovam de forma cabal que a cor interferiu diretamente na exclusão socioeconômica. O IBGE rejeitou incluir a variável orientação sexual no último recenseamento. Hoje, o próprio Conselho Nacional de Combate à Discriminação apoiou antiga proposta minha e da Dra. Maria Berenice Dias de serem os homossexuais incluídos nas próximas estatísticas demográficas. Baseamo-nos hoje em estimativas, relatórios anuais do Grupo Gay da Bahia sobre assassinatos e discriminações homofóbicas e, mais recentemente, nos dados dos serviços de Disque Denúncia Homossexual do Rio de Janeiro e de Brasília. Tais fontes confirmam sem sombra de dúvida que a discriminação anti-homossexual é uma gravíssima epidemia em nosso país e, ao denunciá-la, lançamos mão da mesma estratégia politicamente correta dos negros, judeus, deficientes físicos, quando divulgam a crueldade da discriminação sofrida por tais grupos. Muita gente não sabe que centenas de homossexuais são assassinados em nosso país, simplesmente por ódio contra a homossexualidade. Deixar de demonstrar publicamente que somos os mais discriminados é dar as costas à verdade, abdicar de uma arma convincente contra a opressão: o próprio Programa Nacional de Direitos Humanos reconhece que os homossexuais estão entre os grupos mais vulneráveis da sociedade brasileira. Qual outro grupo é referido de norte a sul do país com a expressão “veado tem mais é que morrer”? Vitimismo seria apenas choramingar, maldizer o sofrimento. Tornar pública a violência homofóbica, reivindicar igualdade, exigir legislação específica e punição dos faltosos, propor ações afirmativas de resgate da cidadania não tem nada de vitimismo. Pelo contrário, é ação politicamente engajada, socialmente acertada. Acusar tais propostas de vitimismo, sim, é má fé, visão tacanha e imobilismo antidialético. Que seja a última vez que tenhamos de refutar estas acusações levianas e equivocadas, inaceitáveis, sobretudo, partindo de membros da própria comunidade homossexual.
Lutar por cotas para todos os discriminados, inclusive os homossexuais, além de ter o respaldo constitucional e se basear no princípio da justiça universal e da isonomia, traz em seu bojo um aspecto de grande importância para o futuro do país: obriga as próprias minorias discriminadas a se conscientizarem da situação de opressão em que vivem e a sociedade, em geral, a refletir sobre as diferentes categorias sociais que formam o povo brasileiro – e, sobretudo, as injustiças e relações pouco democráticas e situação de apartação em que vive a maior parte de nossa população, as assim chamadas minorias. A propalada democracia racial é um mito; o paraíso tropical, uma mentira; a cordialidade tradicional dos brasileiros, um engodo. Queremos, sim, fazer deste país um paraíso tropical onde haja democracia, cordialidade, respeito à diversidade. E, para tornar real nossa utopia do arco-íris, temos de apoiar políticas afirmativas, cotas e reparação, pois são a esperança de que vão contribuir significativamente na construção de uma sociedade mais livre, igualitária, fraternal, justa e solidária que todos desejamos. Neste sentido, em breve, o Grupo Gay da Bahia, o Grupo Quimbanda-Dudu de Gays Negros e a Associação de Travestis de Salvador iniciarão campanha nacional para que, tão logo se inicie a política das cotas para negros, mulheres e deficientes físicos, sejam os gays e lésbicas negros e deficientes físicos os primeiros a serem beneficiados, pois objetivamente, uma mulher negra ou um gay negro sofrem maiores discriminações do que os homens negros. Do mesmo modo: um/a deficiente físico homossexual, por ser duplamente discriminado, deve ser mais compensado. Afinal, a proposta do jovem Marx revela-se mais humanista e justa do que a citada lógica evangélica, quando pleiteou “a cada um segundo sua possibilidade, a cada um segundo suas necessidades”. Cotas para os homossexuais são uma necessidade inadiável, pois sobretudo as travestis, transexuais e homossexuais mais estereotipados/as não gozam das mesmas possibilidades de inserção socioeconômica dos demais cidadãos. As palavras do atual arcebispo do Rio de Janeiro refletem a cruel realidade de tal apartação: “Gays são gente pela metade, se é que são gente”.
* Luiz Mott é professor titular do Departamento de Antropologia da UFBa, presidente do Grupo Gay da Bahia e membro do Conselho Nacional de Combate à Discriminação
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