Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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Os primeiros foram estocados na garagem. Com o tempo, começaram a se espalhar. O espaço ficou pequeno e foi necessário guardá-los dentro de casa. Hoje eles estão por toda parte. Nos cantos, na sala, no quarto. Disponíveis, atraentes, convidativos. São aproximadamente 19 mil livros, e ainda é pouco para a ambição do pedreiro Evando dos Santos. No bairro de Vila da Penha, no Rio de Janeiro, ele transformou sua casa em sede de uma biblioteca comunitária. E abriu as portas para receber um público carente de informação e cultura. Como ele, outros cidadãos – gente simples, comum – estão preenchendo lacunas deixadas pelo poder público. No momento em que é feita a chamada pública para o Programa Bibliotecas, do Socinfo, que pretende aproveitar os recursos do Fundo de Universalização das Telecomunicações (FUST) para estruturar bibliotecas em entidades públicas e organizações não-governamentais de todo o país, essas iniciativas surpreendentes se antecipam e mostram a viabilidade da criação de uma rede de bibliotecas comunitárias – criadas à base de doações, abnegação e solidariedade.
A história de Evando, por si, daria um livro. Aliás, já deu. O cordelista João Batista de Melo escreveu um cordel contando a vida do pedreiro nascido em Aquidabã, no Sergipe, que veio para o Rio e, apaixonado pela literatura, passou a dividir a casa com os livros e estes com toda a comunidade de Vila da Penha. O cordel, vale dizer, foi o responsável pela sua iniciação. Desde pequeno, ele ia à feira só para ouvir os cordelistas. O mundo das letras, porém, permaneceu um mistério até sua chegada ao Rio de Janeiro, quando veio tentar a sorte como tantos outros nordestinos. Converteu-se, passou a freqüentar a Igreja Batista de Vista Alegre e lá o pastor usou a Bíblia para ensiná-lo a ler. Assim consolidava-se a paixão que o levou a guardar uma pilha de livros que tinham o lixo como destino. Ele recorda a data sem fazer esforço: “No dia 17 de julho de 1998, fui consertar um vazamento e encontrei 50 livros que iam ser jogados fora. Resolvi levá-los pra casa e com eles dei início à biblioteca”.
Desde então, o acervo só fez aumentar. O bairro inteiro freqüenta a casa de Evando, ou melhor, a Biblioteca Comunitária Tobias Barreto de Menezes, assim batizada em homenagem a um outro sergipano ilustre, autor de uma série de estudos e ensaios e um dos patronos da Academia Brasileira de Letras. Com orgulho, Evando conta que tem recebido mensagens e solicitações de toda parte. “Acabei de receber de Rondônia um pedido de um cidadão que quer cópia de alguns discursos de Getúlio Vargas. Já separei e vou mandar para ele. Eu estou sempre atendendo solicitações de gente de várias partes do Brasil. E já recebi um telefonema de um brasileiro que mora nos Estados Unidos e tomou conhecimento do nosso trabalho”, diz ele.
No relacionamento com o público, a liberdade é a palavra de ordem. Não há burocracia, não há taxas, não há horários. A biblioteca não fecha nunca, nem exige documentos. “Pode vir a qualquer hora. Você apanha o livro quando quiser e devolve quando quiser”, afirma.
Entre os aproximadamente 19 mil títulos disponíveis, não faltam opções. O acervo inclui livros de todo tipo e, segundo Evando, raridades como um Dicionário de Quimbundo, os discursos de Rui Barbosa em Haia e a obra “Questões Vigentes”, do patrono Tobias Barreto. “Temos até mesmo livros de todas as religiões, porque a minha crença não tem nada a ver com a biblioteca”. Árvores, galinhas e abelhas garantem o ar bucólico do lugar e dão a deixa para Evando ensinar mais uma lição: “É uma biblioteca viva, como deveriam ser todas as outras”.
A biblioteca tem servido também como referência para a realização de uma série de atividades com a comunidade. São feijoadas e saraus literários, um concurso de poesia que resultou em um CD – ainda à espera de patrocínio para ser lançado – e um livro contando a história de Vila da Penha produzido e ilustrado por seus moradores. Livro que, também por falta de recursos, não pôde ser editado, mas está à disposição do público na biblioteca. “Há uma carência muito grande de bibliotecas no Rio de Janeiro. E elas têm uma série de burocracias que fazem as pessoas se distanciarem dos livros. Aqui não tem nada disso. Já atendemos cerca de 15 mil pessoas e não existe nenhuma formalidade. A pessoa deixa o nome, o endereço e o nome do livro que pegou. Mais nada. É uma maneira de mudar essa mentalidade brasileira de não gostar de livros”, explica.
Evando, pelo menos, está fazendo a parte dele. E criando uma legião de seguidores, como o pastor Nivaldino Bastos, que reuniu um acervo de quase 10 mil livros – principalmente livros didáticos e enciclopédias – na Igreja Batista de Irajá, também no Rio. Além da Biblioteca Comunitária Lima Barreto, o pastor mantém cursos pré-vestibulares. A bem-sucedida experiência do pedreiro de Vila da Penha também foi o estímulo maior para dois outros projetos. Um deles ainda está em fase embrionária, mas deve ganhar vida própria até o final do ano – se tudo correr como espera o corretor Flávio Rezende, que abriga cerca de 4 mil livros no porão de sua casa, em Neves, no município de São Gonçalo (RJ). “Nossa comunidade é muito pobre. Estamos precisando de material de construção e de estantes para colocar os livros em ordem. Precisamos concluir também a reforma do local, que eu espero que esteja pronto até o final de dezembro”, diz ele, ansioso.
O espaço já foi batizado – Biblioteca Comunitária Machado de Assis – e está funcionando informalmente. Segundo Flávio, seu gosto pelos livros surgiu ainda criança, com a admiração que nutria pelo trabalho da mãe – professora autodidata que ajudou a educar várias pessoas da comunidade. “Isso sempre me motivou, sempre achei que ela fazia um trabalho muito bonito. Há uns três ou quatro anos, tive a idéia de fazer a biblioteca. É difícil, porque eu também preciso me dedicar ao meu trabalho e à família, mas estamos conseguindo. O Evando me incentivou e orientou, me deu alguns livros e assim comecei. A coisa foi andando devagar, mas está dando certo”, comemora.
Com uma variedade em livros didáticos, enciclopédias, literatura estrangeira e em língua portuguesa, Flávio Rezende espera suprir parte da deficiência das escolas públicas, que, segundo ele, “não têm um acervo muito bom”. Além disso, prossegue, o município tem uma única biblioteca comunitária. Ele pretende ainda promover cursos de alfabetização e pré-vestibulares, para realizar o sonho de tirar jovens das ruas. Se faltam recursos, sobra disposição: “Quando ficar tudo pronto, quero ir de casa em casa na comunidade para explicar a intenção da biblioteca e acredito que muita gente vai querer ajudar”.
Outro “discípulo” de Evando é o professor de Administração Marcelo Sanuto, que também resolveu abrir as portas de casa, em Duque de Caxias (RJ), para receber gente interessada em ler, pesquisar e aprender. “Criar a biblioteca já era uma idéia da família há algum tempo. Tínhamos cerca de 300 livros em casa e queríamos montar uma sala de estudos para os amigos e a família, com o objetivo de promover debates e reuniões sobre determinados assuntos. Aí assistimos a uma entrevista do Evando na televisão e tivemos a motivação para levar o projeto adiante”, explica Marcelo.
De familiar, o projeto logo tornou-se comunitário e, ao menos por enquanto, alternativo: a Biblioteca Comunitária Paulo Freire funciona das 18 às 21 horas, em uma área de 50 metros quadrados, com cerca de 10 mil títulos separados por tema e autor. Aos sábados, domingos e feriados, porém, o atendimento vai de 9 às 18 horas. O espaço é ainda pequeno, mas o professor já está investindo para melhorá-lo: graças a doações, dois banheiros e um bebedouro estão sendo construídos.
Marcelo conta com entusiasmo que os livros excedentes já lhe permitiram colaborar com a abertura de outras três bibliotecas comunitárias, nos bairros de Bangu, Madureira e Austin. “Da mesma forma que o Evando deu a idéia para nós, a gente também está procurando ajudar outras pessoas. É um fator também importante essa disseminação. O ideal é que houvesse uma biblioteca em cada bairro”, afirma.
A biblioteca é, na verdade, o pontapé inicial de uma série de projetos idealizados por Marcelo e sua família. “Temos feito vários trabalhos na comunidade, sobre reciclagem de lixo, aproveitamento de alimentos... o que estamos montando é um Núcleo de Estudos Comunitários. Nosso objetivo é ter um espaço de pesquisa, cultura, arte e palestras. A biblioteca comunitária foi a coisa mais imediata. É o nosso objetivo, e estamos chegando lá devagar”, conta ele.
No momento, o esforço maior é pela legalização da biblioteca, o que deve ser feito em breve. Marcelo lamenta que, por causa disso, tenha deixado de receber dois computadores com impressora que seriam doados por uma empresa. No momento, os visitantes usam o computador da família quando precisam fazer pesquisas na internet. “Precisamos legalizar nossa situação, até mesmo para pagar alguém para atender as pessoas melhor e de forma mais constante e também para fazer mais parcerias”. Por ora, o Ibase e o Instituto Oswaldo Cruz já colaboram enviando algumas publicações.
Marcelo lembra com orgulho o caso de uma diarista que, depois de 19 anos afastada da escola, passou a freqüentar a biblioteca, lendo em média três livros por semana, com o objetivo de prestar vestibular. Acabou aprovada em duas universidades. “O educador Paulo Freire dizia que o conhecimento é o caminho para acabar com a opressão”, recorda.
Se é assim, a proposta do pedreiro Evando dos Santos parece, além de sensata, visionária: “O povo gosta de cultura. Há uma necessidade de colocar o livro na cesta básica”, sugere. “Aí sim você vai diminuir a violência. É um trabalho simples, como simples é o livro”.
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