Autor original: Graciela Baroni Selaimen
Seção original: Artigos de opinião
Rumba Gabriel*
As palavras favela e violência aparecem na mídia, de modo geral, como as duas faces da mesma moeda. De fora, tem-se a impressão — especialmente agora, quando os moradores dos morros cariocas revoltam-se contra os abusos das polícias e expressam a sua dor no asfalto — que uma produz a outra, e que ambas são indissociáveis.
Quem está dentro das favelas, vivendo o dia-a-dia de suas comunidades, sabe que esta impressão é falsa ou no máximo parcial. Baseia-se num estereótipo de favela e se traduz num preconceito que contribui para a exclusão dos pobres de um debate que interessa tanto a nós quanto a qualquer outro setor da sociedade.
A classe média e a elite assustam-se com uma violência que, muitas vezes, vem das favelas, e o medo inspira uma visão simplista: as favelas e os pobres são uma ameaça ao bem-estar social. Mas a gente dos morros está cansada de saber: embora manifeste-se na favela e às vezes venha dela, onde as contradições sociais e culturais são mais agudas, a violência não é intrínseca à favela. Em outras palavras, a violência é produzida em grande parte na favela, e não pela favela e por seus moradores. O que nos leva a outra constatação, igualmente necessária: embora o discurso da fobia da violência seja uma prerrogativa da elite e da classe média, são os pobres, e entre eles os moradores de favelas, os mais afetados por ela.
As estatísticas demonstram cabalmente que os indicadores de violência nas favelas são idênticos ou piores que os de países em guerra civil. E nas favelas a violência tem um agravante que a classe média sente episodicamente, nas chamadas duras, perpetradas por maus policiais, de que seus filhos, quando usuários de drogas, às vezes são vítimas. É a violência policial.
Embora parte dos traficantes use as favelas como escritório e escudo, muitos deles, os mais poderosos, os que trazem as drogas para os morros, não vivem onde nós vivemos. E a imensa maioria dos favelados não tem relação direta com o tráfico, para além do temor, necessário na vida sob qualquer poder armado.
No entanto, somos vistos pela classe média e pela elite como cúmplices do tráfico; e tratados como escória pelos maus policiais. Isso e a distância da mídia fazem com que nas favelas não existam as liberdades individuais a que os cidadãos do asfalto têm direito, como a liberdade de expressão e a inviolabilidade do lar.
Em vez de garantir esses direitos, a polícia é, em diversas ocasiões, agente do desrespeito. Ficamos, então, entre a cruz e a espada, perplexos e impotentes diante de um Estado que só aparece na forma da violência e da humilhação, e de um poder paralelo que, paradoxalmente, em determinadas ocasiões, até nos protege.
Como se não bastassem o desemprego e a má qualidade de vida, as favelas têm esses inimigos internos poderosos. O crescente comércio de drogas forma o quadro mais triste de um conto de fadas ao avesso, em que os adolescentes são as grandes vítimas, iludidos com o dinheiro fácil e demais vantagens ilusórias.
Meninas que se tornam mães aos 10 ou 12 anos, pais alcoólatras ou viciados em outras drogas, jovens de 15 a 18 anos transformados em reis temporários e depois sumariamente mortos, mas logo substituídos, garotos e garotas fascinados pela potência que as armas inspiram.
Por fim, os maus policiais, bandidos fardados e credenciados. Os últimos fatos envolvendo PMs publicados na imprensa não impressionam nem um pouco a população favelada: sempre testemunhamos isso e muito mais. Quem não se lembra da menina Tayane, 4 anos, que levou um tiro na cabeça quando brincava no portão de sua casa? Da dona Maria Isabel, que carregava uma Bíblia e tombou com um tiro de fuzil no peito? Do jovem evangélico Jefferson, morto com um tiro de fuzil no peito, disparado por um sargento que fugiu?
As pessoas honestas e trabalhadoras que moram em favelas começam agora a se mobilizar para combater a violência em todos os seus aspectos. Para dizer que somos nós as maiores vítimas de toda e qualquer violência, seja a do tráfico, seja a da polícia, seja a violência social do desemprego e da fome.
Essa consciência se expressa, de vez em quando de modo irracional, nos protestos de rua, mas também produz ações responsáveis e organizadas, como os trabalhos de diversas associações de moradores que resultam agora na criação do Movimento Popular de Favelas, que realizou no Complexo do Alemão o primeiro seminário sobre violência organizado por quem está no epicentro dela.
Também se expressa no trabalho comunitário realizado no Jacarezinho e no Centro de Referência para Comunidades Especiais da Secretaria de Segurança do Estado do Rio, responsável pelo afastamento da ativa de dezenas de maus policiais. Não por acaso, este trabalho comunitário e a organização autônoma dos moradores de favelas despertam a ira dos que vivem da violência, que tentam desmoralizar nossos líderes. Esses são os inimigos dos favelados, e também da classe média e da elite. Mas não vamos esmorecer. Ao contrário. Há um prejuízo de 500 anos a ser reparado, e a democracia brasileira exige isso.
* Rumba Gabriel (Antônio Carlos Ferreira Gabriel) é presidente da Associação de Moradores do Jacarezinho e membro do Movimento Popular de Favelas.
Texto publicado em O Globo no dia 23 de agosto e no site do Ibase.
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