Por Flávia Lefèvre – 17-12-2020 -- atualizado em 21-12-2020
A ação foi ajuizada em abril de 2019 pelo Intervozes em face da Google Brasil Internet Ltda para questionar remoções de conteúdos que postou na plataforma YouTube. Os conteúdos, que foram removidos sem prévio aviso, faziam parte de uma série de vídeos que apontavam, denunciavam e explicavam abusos cometidos contra direitos humanos por emissoras de televisão em seus programas de teledramaturgia. A série de vídeos foi resultado de convênio com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, cujo objeto consistiu na “capacitação em Direitos Humanos de lideranças e comunicadores comunitários”.
A justificativa da Google para remoção foi a aplicação do mecanismo denominado de Content ID, de acordo com o qual a empresa se aparelhou para funcionar como verdadeira censora de conteúdos, com base em sistema que atende seus interesses e os contratos comerciais firmados com titulares de propriedade intelectual SUPOSTAMENTE VIOLADA. Esse mecanismo opera como censura, que se dá à margem do Poder Judiciário, pois é a Google, funcionando como Gatekeeper, que viabiliza a oportunidade e as ferramentas para titulares de direitos autorais que aleguem violação, denunciarem e requererem remoções de conteúdos.
A juíza de primeira instância extinguiu o processo sem julgamento do mérito, pois entendeu que a ação tratava de direito autoral e que, por isso, o Google seria parte ilegítima, sendo que a demanda deveria ser ajuizada contra a Globo e a TV Bandeirantes. Entretanto, na verdade o mérito da ação do Intervozes é o questionamento da legalidade do mecanismo Content ID, diante da forma unilateral e arbitrária como veem ocorrendo remoções no Youtube, o que motivou a interposição de recurso ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
A apelação foi provida em julgamento ocorrido no último dia 15 de dezembro, uma vez que o Desembargador Ferreira Alves, na 2ª. Câmara de Direito Privado reconheceu que o mérito da ação é a análise da forma como a Google vem aplicando o Content ID, ao largo da legislação brasileira. No voto ficou expresso que: “Com efeito, independentemente da defesa do mecanismo utilizado pela requerida para coibir abusos na Internet, o fato é que quem deve impor remoção de conteúdo e portanto restringir/delimitar a liberdade de expressão para proteção de direitos é o Estado, através do Judiciário. Não cabe tal sopesamento de valores ao Google”. Além disso, foi acolhido o pedido de indenização de R$ 50 mil. O julgamento foi unânime.
É um precedente importante, pois a decisão está fundamentada no direito constitucional de liberdade de expressão e vedação à censura, garantidos também pelo art. 19 do Marco Civil da Internet, deixando claro que remoções de conteúdo das plataformas sob a alegação de violação de direitos autorais não podem se dar por uma via paralela ao Poder Judiciário, sob o crivo da análise da Google e dos grandes e poderosos usuários do Youtube titulares de direitos autorais, que têm recebido tratamento privilegiado e discriminatório, viabilizando a censura, como ocorreu no caso do Intervozes, cujo video trazia críticas a determinados conteúdos das empresas de televisão..
Os Termos de Serviço da Google relativos ao Content ID deixam claro que a decisão de remover ou manter determinado conteúdo postado na plataforma é exclusivamente da plataforma, que viabiliza aos detentores de direitos autorais o privilégio de requererem a remoção de conteúdos:
Ou seja, esta afirmação revela de forma clara que todo o mecanismo de remoção de conteúdos ocorre sob a absoluta responsabilidade da Google, que deve arcar com os ônus das práticas comerciais adotadas, com base na teoria do risco da atividade econômica, como está expresso no art. 170, da Constituição Federal e Código de Defesa do Consumidor, pois deve responder pelas práticas comerciais que adota na relação de consumo que mantem com seus usuários, como no caso do Intervozes. Ou seja, dada a dimensão da influência que o Youtube exerce hoje no mercado brasileiro, não seria razoável atribuir a uma empresa privada, que atua de acordo com seus interesses comerciais e de seus parceiros, decidir o que deve ou não ser mantido na Internet.
Os dados divulgados pela Google1 relativos a 2020 informam que seu mecanismo de buscas é responsável por mais de 89% das pesquisas na internet no planeta e algumas de suas aplicações, como o Google for Education, permitem que a empresa tenha penetração cada vez maior em instituições públicas e privadas de ensino, o que lhe proporciona uma condição de oferecimento aos anunciantes não só de dados pessoais, mas também de informações de interesse educacional e científico. Em torno de 2 bilhões de pessoas usam o YouTube por dia, sendo que, a cada minuto, 300 horas de vídeos são enviadas para a plataforma, que tem quase 5 bilhões de vídeos assistidos por dia.
Esses números demonstram que as atividades de gerenciamento de conteúdos dessas empresas devem ser supervisionadas pelo Poder Judiciário, como foi reconhecido pela decisão do TJSP, e merecem ser reguladas, como tem sido discutido no âmbito dos debates relativos ao PL 2630/2020.
Ver também: Em decisão inédita, Justiça condena Google por censura prévia ao remover conteúdos
1 . https://www.youtube.com/intl/pt-BR/about/press/ Acesso em 27 de setembro de 2020.
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