Você está aqui

Mortes por armas de fogo: a dura e fria realidade dos números

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original:






Mortes por armas de fogo: a dura e fria realidade dos números


Nos últimos anos, muito se tem discutido e argumentado, a favor ou contra, do desarmamento da população. Mas em toda essa discussão, o que é incontestável é a nua e crua frialdade dos números. Entre 1979, ano em que se inicia a divulgação dos dados do Subsistema de Informações de Mortalidade, até 2003, último ano disponível, morreram no Brasil acima de 550 mil pessoas vítimas de armas de fogo. Se essa cifra já representa uma quantidade assustadora, é ainda mais apavorante saber que 206 mil deles eram jovens, cujo extermínio com armas de fogo chega a representar:

- 41,6% do total de mortes por armas de fogo no ano de 2003; e

- 34,4% do total das mortes de jovens entre 15 e 24 anos de idade nesse mesmo ano.

Colocado de uma outra forma: em cada três jovens que morrem no Brasil, um foi vitimado por arma de fogo! Assim, as armas de fogo se constituem, de longe, na principal causa de morte dos jovens brasileiros, bem longe do segundo fator, os acidentes de transporte, que representa 15,8% da mortalidade juvenil.

A gravidade do quadro das mortes juvenis não deve levar a pensar que a situação é muito diferente para o conjunto da população. Sendo responsável por 3,9% do total de mortes do país no ano de 2003, as armas de fogo representam a 3ª causa de morte, logo depois das doenças do coração e das cerebrovasculares. Vemos que, em ambos os casos, sejam jovens ou não, as armas de fogo se constituem numa das maiores, senão a maior, fontes de agravos à vida da população brasileira.

A aids, ainda em 2003, matou 11.276 pessoas de todas as idades. Número preocupante. Só que as armas de fogo mataram 3,5 vezes mais: um total de 39.284 pessoas. Entre os jovens, a aids foi responsável por 606 óbitos. Já as armas de fogo mataram 16.345 jovens, isto é: 27 vezes mais! Inclusive na faixa etária de maior incidência do flagelo – a que vai dos 30 aos 39 anos – a aids matou 4.295 pessoas, quando as armas de fogo vitimaram 8.052 pessoas nessa faixa, quase o dobro (87,5%) que a aids.

Existe uma enorme preocupação e grande mobilização, que julgamos totalmente necessárias e justificadas, de combate a esse flagelo. A própria Unesco, no plano internacional e também no nacional, é parte integrante de uma diversidade de programas de combate à aids. Mas para um outro flagelo, causador de 16.345 mortes de jovens no mesmo ano, isto é, um mal 27 vezes maior do que a aids, são ainda escassas e bastante tímidas nossas reações e políticas de enfrentamento. Ainda estamos discutindo se é justo e de direito permitir que as armas de fogo continuem a exterminar anualmente grande contingente de pessoas cujo único delito foi o de morar num país extremamente complacente com a circulação de armas de fogo.

Como foi acima colocado, no ano de 2003, morreram no Brasil 39.284 cidadãos vitimados por bala. Isso corresponde a 108 mortes por arma de fogo a cada dia do ano. Muito mais vítimas cotidianas do que é noticiado em nossa imprensa sobre as maiores chacinas do país ou sobre os maiores e mais cruentos atentados nos atuais enfrentamentos existentes na Palestina ou no Iraque.

O Brasil, sem conflitos religiosos ou étnicos, de cor ou de raça, sem disputas territoriais ou de fronteiras, sem guerra civil ou enfrentamentos políticos levados ao plano da luta armada, consegue exterminar mais cidadãos pelo uso de armas de fogo do que muitos dos conflitos armados contemporâneos, como a guerra da Chechênia, a do Golfo, as várias Intifadas, as guerrilhas colombianas ou a guerra de libertação de Angola e Moçambique.

No contexto internacional, analisando os dados correspondentes a 57 países, para os quais contamos com informações sobre o tema, o Brasil, com uma taxa de 21,7 óbitos por armas de fogo em 100 mil habitantes, ocupa o segundo lugar, logo depois da Venezuela. Com esse índice o Brasil encontra-se bem distante, inclusive, de outros países onde impera uma ampla circulação de armas de fogo, como os EUA, que ostenta uma taxa de 10,3 mortes em 100 mil habitantes: menos da metade do Brasil. E bem mais distante ainda de países com conflitos armados, como Israel que, apesar do conflito com os palestinos, apresenta uma taxa de óbitos por armas de fogo oito vezes inferior à brasileira. Nossa taxa fica muito longe das de países como Cuba ou Irlanda (que beirando uma vítima de armas de fogo em cada 100 mil habitantes, resulta 21 vezes menor que a taxa brasileira). E muito, mas muito mais longe ainda das de Hong Kong, Coréia ou Japão, que com uma taxa de aproximadamente 0,1 mortes por armas de fogo em 100 mil habitantes, ostentam uma taxa 217 vezes menor que a brasileira!

Em seu mandato primordial de zelar pelo desenvolvimento da paz e da segurança no mundo desde 1948, ano em que teve lugar a primeira missão da ONU na guerra entre árabes e israelenses, foram mais de 50 operações de paz no mundo todo. Desde o alto dessa experiência, uma das primeiras recomendações das missões de paz da ONU é a de "desarmar as facções em conflito".

Mas desarmar a população é o bastante? Sabemos que não. Desarmar é requisito indispensável, fundamental, primordial para limitar e cercear as condições e oportunidades de manifestação da violência letal. Mas não é suficiente. Além dessa, existem outras ações e políticas que devem ser propostas e implementadas. Como estabelece a própria Constituição da Unesco, assinada em novembro de 1945 pelos países-membros: "se as guerras nascem na mente dos homens é na mente dos homens que devem ser construídos os baluartes da paz". Não é só a farta disponibilidade de armas de fogo o que levou os níveis de violência letal do Brasil a limites insuspeitados e insuportáveis. É também a decisão de utilizar essas armas para resolver todo tipo de conflitos interpessoais, na maior parte dos casos, banais e circunstanciais. É nesse campo que deve ser gerada uma nova proposta de ação política, criando oportunidades e alternativas para a juventude, setor da sociedade mais afetado pela mortalidade por armas de fogo. Criando as bases para a construção de uma nova cultura de paz e de tolerância entre os homens, com profundo respeito às diferenças e ao direito efetivo de todos os indivíduos de ter acesso aos benefícios sociais mínimos para uma vida digna: saúde, trabalho e educação. Se conseguirmos implementar conjunta e articuladamente ambas as fases desse desarmamento – a física e a cultural –, não duvidamos que o futuro próximo será bem melhor.

Estas são as Considerações Finais do relatório, que está disponível na íntegra na área de Downloads desta página.





A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados.

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer