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Referendo sobre a vida

Autor original: Marcelo Medeiros

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Referendo sobre a vida


Entre os países que não estão em guerra, o Brasil é o segundo com mais mortes causadas por armas de fogo, atrás apenas da Venezuela. A informação é da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), que divulgou no dia 5 de maio dados de uma pesquisa feita em 57 países sobre a proporção entre o número de mortos por tiros e a população. A média brasileira é de 27,72 mortes por cem mil habitantes.

O número está muito acima de países como Inglaterra e Japão, onde a venda de armas de fogo é proibida. No país europeu, a média é de 0,26 mortes por 100 mil habitantes, enquanto no oriental, a mais baixa do mundo, é de 0,06 mortes por 100 mil habitantes. Nos EUA, onde o comércio de armas é permitido, assim como no Brasil, o índice chega a 10,27 mortes por 100 mil habitantes, o que lhes dá o oitavo lugar no ranking do órgão das Nações Unidas.

A divulgação dos números coincide com as discussões sobre a realização do referendo sobre a comercialização de armas no Brasil, previsto no Estatuto do Desarmamento. A consulta, de acordo com a lei, deve ser realizada em outubro, mas ainda não foi regulamentada. De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral, o decreto que institui a votação deve estar publicado até o fim deste mês para que haja tempo suficiente para organizá-lo. O Projeto de Decreto de Legislativo (PDL), porém, só chegará ao plenário da Câmara na semana que vem e ainda será preciso esperar que medidas provisórias sejam votadas para destrancar a pauta. Se não for votado a tempo, o referendo pode não ser realizado.

Essa hipótese, porém, nem passa pela cabeça de Denis Mizne, diretor-executivo do Instituto Sou da Paz. “Se não for agora, nunca será. Essa é a primeira vez que o Brasil realiza um referendo popular e a primeira vez em que se dá à população chance de decidir sobre seu maior bem – a própria vida”, diz. Mizne é um dos maiores defensores da proibição do comércio de armas no Brasil. Seu argumento é simples: menos armas nas ruas, menos acidentes acontecendo. Ele lembra, porém, que cada cidade tem uma lógica diferente e que, por isso, só o fim da venda de armas não será suficiente para diminuir a violência. Entre as medidas que recomenda estão o aumento da repressão policial ao porte ilegal de armamentos e a construção de acordos regionais que evitem o contrabando.

Nesta entrevista, o diretor do Sou da Paz argumenta contra o comércio de armas e mostra como está a tramitação do PDL no Congresso.

Rets - O Estatuto do Desarmamento prevê um referendo sobre o comércio de armas no Brasil em outubro, mas até agora o Projeto de Decreto Legislativo que cria a consulta ainda não foi votado. Haverá tempo para a votação?

Denis Mizne - A princípio, sim, mas depende de como o projeto irá tramitar no Congresso. O deputado João Paulo Cunha (PT-SP) apresentou ontem [4 de maio] o relatório do PDL, que mantém a pergunta formulada pelo Senado [“O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”] e encarrega o Tribunal Superior do Eleitoral de definir a data da votação, que deve acontecer em outubro.

Ontem alguns deputados pediram vistas do projeto, o que atrasou seu envio para o plenário. Acredito, porém, que esta semana ele seja votado pelos deputados e seja aprovado. Afinal, é nosso deadline.

De qualquer forma, essa demora é um absurdo. O PLD passou rápido no Senado, mas na Câmara, onde está grande parte dos deputados da “bancada da bala” [grupo de deputados que defende a continuidade das vendas de armamentos], não se consegue avançar. Eles fazem questão de atrasar ao máximo o andamento de uma questão de suma importância para os brasileiros.

Rets - Caso esse atraso se prolongue, como ficará o referendo?

Denis Mizne - A lei diz que ele deve ser feito em outubro. Não penso em outra hipótese. Se não for agora, nunca será. Essa é a primeira vez que o Brasil realiza um referendo popular e a primeira vez que se dá à população chance de decidir sobre seu maior bem – a própria vida. Não podemos admitir que ele não aconteça. Já há previsão de recursos no orçamento e o governo já mostrou disposição em levá-lo adiante. Ou seja, qualquer outra hipótese será um desrespeito à lei.

A tendência é que o trâmite seja normal, mas espero que haja um esforço por parte dos deputados para votar logo o projeto. No momento, há algumas Medidas Provisórias travando a votação, então não adianta forçarmos a barra agora. Mas pesquisas mostram que a população é contrária à venda de armas de fogo. O Datafolha mostrou, na semana passada, que 83% dos paulistanos, por exemplo, são a favor da proibição. Os congressistas precisam estar atentos a isso.

Rets - Além dessa pesquisa em São Paulo, outras, feitas em diferentes cidades, mostram o mesmo comportamento. Em Curitiba, por exemplo, 70% declararam ser contrários à venda de armamentos. Esse alto índice de adesão surpreende?

Denis Mizne - A mim, não. O Sou da Paz foi a primeira instituição a trabalhar com a questão do desarmamento no Brasil e, nesse tempo, percebemos que, quanto mais consciente a população é em relação aos males de ter uma arma, mais ela é contrária à comercialização.

Nos primeiros 30 segundos de conversa, todas as pessoas se colocam a favor da venda. Pensam na possibilidade de serem assaltadas, de se defender etc. Mas depois de cinco minutos de conversa, todos mudam de posição. Vêem as pesquisas sobre as chances de morrer e matar por acidente, o custo no sistema de saúde e se convencem rapidamente da necessidade de proibir a comercialização.

E nesses oito anos de Sou da Paz, tenho percebido que as pessoas têm cada vez mais informação sobre esse assunto, mas isso também não garante nada para a votação. As pesquisas geralmente são realizadas em regiões onde as campanhas de desarmamento já estão bem. Temos que olhar outras áreas e analisar a propaganda que grupos contrários à proibição estão fazendo. Afinal, eles vão tentar confundir a população, utilizando dados de outros países, com realidades distantes da do Brasil, por exemplo. Não sei se a população em geral é mesmo contrária à venda de armas.

Rets - O governo federal já recolheu mais de cem mil armas na campanha de desarmamento, mas isso não significou uma grande queda no número de homicídios e assaltos. Há mesmo uma relação entre porte de arma e violência?

Denis Mizne - Não ligo um problema ao outro tão mecanicamente. A polícia de São Paulo, por exemplo, é a que mais apreende armas no país. E faz isso cada vez mais. Em 1996, foram dez mil. Em 2002, 40 mil. Isso tudo está aliado a campanhas de conscientização da população. Outro item que colabora para a campanha é a aprovação da lei que torna inafiançável o porte de arma ilegal. O governo paulistano avaliou em 25% a diminuição do número de pessoas circulando armadas no estado. Isso já previne muitos acidentes.

Mas também precisamos analisar a natureza dos homicídios. O Rio de Janeiro, por exemplo, também tem muitas mortes por motivos fúteis, mas possui peculiaridades relativas à organização do crime. Em qualquer estado, quanto menos armas, menos homicídios. Mas precisamos falar de Brasil e não de outras realidades, como a da Suíça. Lá há muitas armas, mas não existem tantas diferenças sociais como aqui.

De qualquer forma, ainda é cedo para afirmar que está acontecendo uma diminuição da violência por causa da maior apreensão de armas. Isso só acontecerá quando outras medidas forem tomadas ao mesmo tempo.

Rets - A pergunta escolhida lhe parece ideal?

Denis Mizne - Sim, pois é neutra. O problema da outra proposta [“O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido aos cidadãos para sua defesa e de seus bens?"] é a indução da resposta. É o mesmo que eu defender a proposta “o comércio de armas deve ser proibido, pois milhares de brasileiros morrem baleados por ano”, por exemplo. O ideal é a pergunta estimular o debate público.

Rets - Se o referendo for aprovado, você teme a propaganda dos que são favoráveis à comercialização de armas?

Denis Mizne - Sim, acho que há uma grande probabilidade de isso acontecer e, mais ainda, de haver um falso debate. O ideal é que somente especialistas opinassem se essa é ou não uma boa medida. Mas o que veremos são ONGs e Secretarias de Segurança defendendo o “sim” e pessoas interessadas no comércio defendendo o “não”. Esses vão utilizar argumentos relacionados, como a geração de empregos, para tirar o foco da questão. A tendência é que se dê espaço igual a ambos.

Só espero que haja controle pelo TSE para haver justiça e não surjam problemas, como alteração de estatísticas.

Rets - Haverá propaganda televisiva?

Denis Mizne - Isso ainda está sendo discutido pelo TSE. A princípio funcionaria como o plebiscito sobre forma de governo. Se um partido tiver uma posição tomada em relação ao assunto, faz propaganda nesse sentido. Caso contrário, deixa cada representante opinar livremente.

Rets - Você já disse acreditar na força da propaganda dos favoráveis à comercialização de armas. Há alguma estratégia para responder a isso?

Denis Mizne - Pretendemos fortalecer os comitês estaduais de desarmamento, além de melhorar a qualidade da informação fornecida sobre essa questão e da promoção de campanhas de TV, tudo isso na medida do possível. Precisamos ver, porém, o problema de cada estado de forma isolada. Na verdade, gostaria que cada cidade tivesse um comitê pró-desarmamento.

Rets - Mesmo que a população escolha a proibição da venda de armas, ainda haverá muito armamento espalhado pelo país. O que fazer com elas?

Denis Mizne - Esse é um dilema. Precisamos reduzir o estoque de armas no Brasil e isso pode ser feito por meio de campanhas de devolução e do aumento da repressão policial ao porte de armas. A maioria das armas apreendidas no Brasil é fabricada aqui mesmo, ou seja, elas fazem parte do comércio legal. Precisamos diminuir o acesso a esse comércio.

Além disso, precisamos aumentar a conscientização, lembrando que carregar arma não registrada é ilegal. Logo, quem tiver uma precisa legalizar e, para isso, precisa fazer testes psicológicos, entre outros, e renová-los a cada dois anos, além de mostrar qual é a necessidade de se ter um revólver em casa. Quem não faz isso precisa saber que está cometendo um crime. Ou seja, precisa aproveitar para entregar as armas e receber sua indenização enquanto a campanha do governo existir.

Rets - Com a proibição, é possível que o contrabando de armas cresça ainda mais. Como resolver esse problema?

Denis Mizne - Esse é outro ponto problemático. As armas contrabandeadas são, em sua maioria, brasileiras. Somos vice-líderes americanos nesse item, perdendo apenas para os EUA. Produzimos mercadorias que saem do país legalmente e voltam ilegalmente. Há uma campanha internacional que tenta diminuir esse problema, comandada pela Anistia Internacional e pela Oxfam. O Paraguai, por exemplo, com seus seis milhões de habitantes, não tem como consumir a quantidade de armas que compra. Mas ele já mudou sua legislação.

Estamos preocupados e precisamos intensificar o controle. É hipocrisia proibir armas internamente e continuar a exportá-las e importá-las.

Marcelo Medeiros

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