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Comunicação: a outra margem do rio

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Novidades do Terceiro Setor





Comunicação: a outra margem do rio
Paulo Lima/Rits

"No início, tínhamos receio de que os telecentros abririam um mundo tão novo para essas comunidades que poderia absorver – ou sufocar – toda a cultura tradicional desses povos. Na prática, percebemos que o mundo novo se abriu, mas em vez de enfraquecer os conhecimentos tradicionais, aconteceu o contrário: os comunitários, ao se depararem na Internet com este novo mundo, tão diferente, conseguiram identificar melhor quem são eles e agora querem montar os sites comunitários para apresentarem a realidade deles para o mundo". Caetano Scannavino, coordenador do Projeto Saúde e Alegria, sintetiza assim a reação de populações ribeirinhas do interior do Pará ao trabalho desenvolvido em parceria com a Rede de Informações para o Terceiro Setor (Rits), com apoio da Fundação Avina e do Instituto para a Conectividade nas Américas. Dois telecentros já foram instalados nas comunidades de Suruacá e Maguari, às margens do rio Tapajós. Mais um está previsto para ser inaugurado em Belterra. Mas há outras novidades no ar.

"No ar", aliás, não é força de expressão: em junho uma equipe da Rits volta à região para continuar os testes com os equipamentos que vão ampliar o alcance das antenas que servem aos telecentros, expandindo o sinal para comunidades vizinhas. Tudo com tecnologia wireless (sem fio), funcionando com energia fotovoltaica, gerada a partir da luz solar.

O projeto usa a criatividade para aumentar o potencial do programa Governo Eletrônico – Serviço de Atendimento ao Cidadão (Gesac), do governo federal [mais informações no glossário, ao lado]. O Gesac garantiu a instalação de duas antenas – uma em cada margem do Tapajós – que viabilizaram os telecentros de Suruacá e Maguari, com capacidade para até 20 máquinas. A idéia, agora, é espalhar o sinal de rádio para outras comunidades. "Pensamos, em um primeiro momento, em ter o apoio do Gesac em áreas estratégicas, áreas onde o Saúde e Alegria trabalha que estão muito próximas da região conhecida como Terra do Meio, onde a presença da soja e da grilagem é muito grande. Mas tivemos a negativa do governo, neste momento, para novas antenas do Gesac. Diante desse problema, começamos a pensar em soluções. E surgiu a idéia de trabalhar com wi-fi para levar o sinal dos telecentros para outras comunidades. Nossa iniciativa é propagar o sinal e favorecer a relação custo-benefício, uma vez que um conjunto maior de pessoas viria a se beneficiar", conta Paulo Lima, diretor executivo da Rits.

A idéia central do projeto, diz ele, é usar tecnologia limpa. "Não há passagem de cabo, não se derruba árvore, é tudo sem fio", afirma. Em fevereiro foi realizada uma operação conjunta com o Saúde e Alegria. Uma antena de 30 metros de altura foi montada e os testes tiveram início. O resultado mostrou que era possível manter um sinal de boa qualidade a uma distância de cerca de 20 quilômetros.

"Inicialmente, seguimos uma linha paralela ao rio, tentando atravessar a mata para ir de uma comunidade a outra. Isso nos tomou de dois a três dias e se mostrou ineficiente", descreve Lima. "A literatura sobre o wi-fi já apontava que a floresta consumiria parte da energia distribuída pelas ondas de rádio. Começamos, então, a estudar a possibilidade de apontar a antena para o rio, indo em direção à outra margem. Aí, sim, tivemos uma reação da natureza muito mais favorável". Diante disso, a estratégia adotada foi fazer um ziguezague, transmitindo o sinal de uma margem para a outra, para driblar a interferência da floresta. Para isso, deverão ser instaladas antenas setoriais, como explica Rodrigo Afonso, gerente de Tecnologia da Informação da Rits: "Elas têm uma grande vantagem: não é necessário ter uma precisão, porque elas espalham o sinal em um determinado ângulo e assim se consegue fazer o posicionamento da antena de maneira um pouco mais fácil. Porém, por espalhar o sinal, o alcance é menor". Para contornar esse problema, a solução é utilizar um conjunto de antenas. E como o sinal vai atravessar o rio de uma margem à outra, será possível uma navegação dupla: nas águas do Tapajós e nas ondas da Internet. O Saúde e Alegria mantém uma ambulancha que presta socorro médico e está construindo um barco-hospital. Ambos terão conexão à Internet e tecnologia de voz sobre IP (VoIP) para se comunicarem com as comunidades. "Vamos usar uma antena onidirecional, que pega em 360 graus", explica Afonso. Essa antena vai captar o sinal onde ele estiver mais forte, garantindo a conexão a bordo.

A tecnologia VoIP oferece a possibilidade de as pessoas fazerem ligações telefônicas usando a própria conexão à Internet – e sem um consumo significativo de banda de acesso à Internet. "Você consegue ter duas ligações por comunidade sem afetar o restante da banda. As pessoas vão poder fazer ligações tanto entre elas quanto para telefones comuns, até mesmo para o exterior, caso isso seja contemplado no projeto", diz Rodrigo Afonso, que acrescenta: cada aparelho de VoIP vai ter um número, e esse número será acessível como um telefone comum dentro de uma rede interna. "Não é um número público, você não liga de um telefone comum para ele, ainda, mas pode fazer as ligações entre as estações como se fosse um aparelho comum. É como se fosse um PABX interno, com os ramais todos espalhados pela rede". Afonso observa, no entanto, que ainda faltam "detalhes administrativos" para a implementação do serviço. "É preciso ver quem vai pagar uma ligação que é feita nessa localidade e como ela será cobrada. E isso vai ser discutido e pensado com a participação das comunidades".

Butantã

As aplicações de toda essa tecnologia são inúmeras. Paulo Lima conta que, ao chegar a Maguari em fevereiro, se surpreendeu ao ver a comunidade reunida no telecentro para assistir a um filme em DVD, o que tem sido uma das maiores diversões nos fins de semana. "São filmes dublados, filmes a que eles dificilmente teriam acesso", relata. "Quando uma das pessoas vai a Santarém ou a Belterra, municípios da região que têm melhor estrutura, pega alguns filmes e leva para lá. E ficam dez, 15 pessoas ali, assistindo na frente do computador, que é multimídia, tem DVD-player e caixas de som. É algo que transcende o tema convencional da inclusão digital. O telecentro é utilizado pelos ribeirinhos como uma experiência de inclusão cultural. Por isso eles chamam os espaços de Telecentros Culturais com Internet".

Um episódio vivido pelas próprias equipes da Rits e do Saúde e Alegria em fevereiro também ilustra a importância que podem ter as tecnologias de informação e comunicação. Enquanto faziam os testes de alcance do sinal ao longo do rio, dentro de um barco, perceberam um alvoroço na comunidade de Piquiatuba: uma jovem de 15 anos havia sido picada por uma cobra. Não havia posto médico, soro antiofídico, estrada ou telefone. O acesso único ao local era pelo rio, mas a embarcação que fazia o transporte regular na região não chegaria em menos de 24 horas. Em uma situação dessas, a demora poderia ser fatal. Não houve jeito a não ser abandonar os testes e socorrer a menina. Se houvesse uma conexão à Internet ali, bastaria se comunicar com a cidade mais próxima para pedir ajuda. Enquanto isso, o médico poderia orientar sobre o que deveria ser feito até sua chegada ao local.

No caso dessa menina, a Internet teve um papel importante. "Ela estava com um torniquete na perna", diz Paulo Lima, "e nós tínhamos a impressão de que isso não se usava mais, só que a gente não tinha certeza. Como estávamos conectados à Internet ali, buscamos informações sobre o que significava uma picada de surucucu e como proceder. No site do Instituto Butantã, estava lá: não se usa mais torniquete há muito tempo e é preciso deixar a pessoa com a perna em repouso. Quando a gente tirou o torniquete e viu que o que estava sendo feito era o que cientificamente se devia fazer, ficamos bem mais tranqüilos. E a menina também passou a sentir muito menos incômodo".

Para o diretor executivo da Rits, essa experiência é uma amostra dos desafios a serem enfrentados nesse projeto. "É completamente diferente de trabalhar em uma área urbana, você fica exposto a imprevistos de uma maneira muito mais forte. Por isso, quanto mais a gente vai trabalhando com o Saúde e Alegria, mais respeita o que eles conseguiram fazer numa área com tantas dificuldades naturais e de comunicações. É um aprendizado muito interessante, muito grande", admite.

Atualmente o Projeto Saúde e Alegria atua em 143 comunidades na região amazônica. E a criação dos telecentros gerou muita curiosidade nas áreas vizinhas. Várias pessoas chegavam de barco para conhecer os telecentros, outras andavam horas a pé até Suruacá ou Maguari. "A questão do acesso ao computador – não digo nem à Internet, que eles não conhecem muito – é um sonho dessas comunidades. Com o sucesso dos telecentros, transformando o sonho em realidade (e mais do que isto, pois finalmente entenderam e viram na prática o que é a Internet), criou-se uma expectativa muito grande por mais telecentros", observa Caetano Scannavino, cujo depoimento pode ser lido na íntegra no link ao lado [no alto, à direita]. Tamanho entusiasmo se reflete no próprio ambiente – limpo, organizado, com os computadores bem conservados e a comunidade usando software livre sem a menor dificuldade. "Chegamos lá e eles estavam usando tecnologias de última geração numa boa, sozinhos. E tudo rodando em Linux, em software livre. Isso mostra que não é necessário ter Windows para aprender a utilizar um computador", comenta Rodrigo Afonso.

Incentivo

O projeto, nesta segunda fase, aponta soluções para a ampliação de novos telecentros comunitários e constitui uma experiência-modelo de baixo custo e alto impacto social para a viabilidade tecnológica da inclusão digital em regiões isoladas da Amazônia. Segundo Paulo Lima, é um claro exemplo da contribuição que uma ONG tem a dar, com base em três elementos fundamentais: criatividade, capacidade de operação e inovação. "São as características mais ricas na relação entre sociedade civil e Estado. Essa experimentação, que deixa resultados concretos, vai conectar mais duas comunidades onde vamos deixar equipamentos – um laptop em cada uma, provavelmente em Parauá e Piquiatuba. Vamos documentar muito bem esses experimentos e tentar apresentar um projeto de maior fôlego para cobrir um número maior de comunidades". Para alcançar esse objetivo, o desafio é obter financiamento. "A iniciativa se mostra viável a custo baixo", analisa. "Mas para ganhar escala precisa de um apoio maior, pensando que todo o investimento de pesquisa e implementação já está pronto".

Fausto Rêgo

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