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Guerra e paz

Autor original: Maria Eduarda Mattar

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Guerra e paz
Stevie Mann/Unicef

No dia 9 de janeiro, a assinatura do acordo de paz pelo governo do Sudão e pelo Exército Popular Sudanês de Libertação (SPLA, da sigla em inglês) pôs fim a 21 anos de guerra civil no sul do país. O norte – árabe, fundamentalista islâmico – estava em conflito com o sul – animista, negro e cristão. De acordo com dados das Nações Unidas, a situação resultou em dois milhões de mortos, quatro milhões de deslocados e devastações. Mesmo depois do acordo de paz, conflitos ainda atingem algumas partes do país, principalmente a região de Darfur, cidade no oeste do país.

É neste contexto de tentativa de pacificação e conflitos residuais que a missionária Reinhild Schumacher, da Cruz Vermelha alemã, está trabalhando. Ela atua como chefe da unidade de cuidados básicos em saúde, do campo de pessoas deslocadas localizado em El Fasher, perto de Darfur. Nesta entrevista exclusiva à Rets, ela conta como as organizações de ajuda humanitária tentam driblar a violência e a escassez de recursos para levar suprimentos, segurança e esperança ao país africano.

Rets - Você já esteve em alguma missão como essa?

Reinhild Schumacher - Esta é minha primeira missão em uma situação de emergência com milhares de pessoas deslocadas internamente no país, os chamados IDPs (da sigla, em inglês, para internal displaced people). Antes eu havia trabalhado em Ruanda, e parte do grupo com o qual eu trabalhava lá eram refugiados do Congo. Nosso foco de atuação eram as necessidades e a situação especial dos refugiados – que, por definição, são aqueles que ultrapassam as fronteiras entre países – e dos IDPs, que são aqueles que fogem, se deslocam dentro do próprio país.

Rets - Quais são os problemas da região em que você está agora?

Reinhild Schumacher - O Sudão passou por um longo conflito entre o norte e o sul do país. Um detalhado e amplo acordo de paz foi assinado em janeiro deste ano. Mas, aproximadamente dois anos atrás, um conflito estourou em Darfur, que fica na parte oeste desse imenso país, e continua acontecendo, resultando no deslocamento de quase dois milhões de pessoas. A quase totalidade de Darfur parece um grande deserto, com as pessoas enfrentando a fome e não podendo cultivar por causa da violência. Atualmente estamos na expectativa de novos fluxos de pessoas para os campos de IDPs no meio do ano, devido à fome. Ou seja, o deslocamento não é só em busca de proteção, mas também pelo fato de enfrentarem a fome.

Rets - Quando estava se preparando para a missão, o que esperava encontrar?

Reinhild Schumacher - Um ano antes de vir para El Fasher, na parte norte de Darfur, comecei a acompanhar as notícias sobre a situação do conflito e seus impactos nos civis. Quando cheguei aqui, encontrei o que já esperava: milhares de pessoas fugindo de suas casas, tentando encontrar segurança, abrigo, alimento, água e acesso aos cuidados de saúde.

Rets - Quais são as pessoas mais afetadas pelo conflito?

Reinhild Schumacher - A população civil de Darfur. As pessoas sabem sobreviver em uma região na qual miséria, clima quente e falta de água são coisas cotidianas. Devido ao conflito ainda existente, muitas delas tiveram que fugir. Dentre essas pessoas, as mais afetadas são os grupos vulneráveis de crianças e idosos, assim como mulheres e meninas desprotegidas, que correm o risco de serem estupradas. Para as agências humanitárias, é difícil chegar aos IDPs, uma vez que nem todos eles conseguem chegar aos campos e acabam se escondendo em algum lugar da região. Há também as chamadas “zonas proibidas”, às quais as agências humanitárias são proibidas de ir.

Rets - Quais são as condições de trabalho aí?

Reinhild Schumacher - As condições de trabalho dentro da Cruz Vermelha são tecnicamente boas em termos de equipamento e questões de segurança, uma vez que resposta emergencial é uma das principais responsabilidades dentro da Cruz Vermelha/Red Crescent Movement. É claro que não se pode comparar essas condições de trabalho com um dia normal de trabalho em algum outro lugar. Trabalha-se de acordo com a necessidade; assim, longas horas de trabalho são uma coisa corriqueira. Além disso, como estamos em um país islâmico, não temos longos fins-de-semana, mas tentamos tirar uma folga aos domingos. Como não nos permitem deixar a cidade por razões de segurança e temos que seguir as regras de toque de recolher, a vida pessoal é bastante restrita.

Rets - Vocês dispõem de todos os equipamentos e instalações necessários?

Reinhild Schumacher - A Cruz Vermelha alemã, em cooperação com a Red Crescent sudanesa, coordena duas unidades de cuidados básicos de saúde em El Fasher. Um deles é localizado no campo de IDPs, servindo a essas pessoas, e o outro fica na cidade de El Fasher, para atender a população de lá, que também enfrenta muitas necessidades. Como estamos no meio de uma área arrasada por conflitos, os suprimentos têm que ser organizados e obtidos tanto localmente quanto vindo da capital, Cartum, ou de fora do país. Organizar os suprimentos que vão para as unidades de cuidados básicos de saúde é um desafio logístico e demanda muito planejamento de contingências. Mas, no fim do dia, acaba dando tudo certo.

Rets - Falando nos suprimentos, como água e alimentos chegam aos acampamentos e a quem precisa?

Reinhild Schumacher - Água e alimentos são um problema: água é rara e perfurar para buscá-la é uma atividade difícil, na medida em que a maioria dos locais já perfurados estão secos ou a água não é própria para consumo. No momento, a água está se tornando extremamente escassa, devido à temporada de seca que está chegando e à grande quantidade necessária em função do aumento da população em El Fasher. Os alimentos e sua distribuição para os campos são coordenados pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha e outras organizações humanitárias. Nessa questão também se enfrenta um grande desafio de logística, planejamento de contingenciamento e acesso por parte das pessoas necessitadas. Ao contrário da Cruz Vermelha alemã, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha oferece serviços dentro da área de Darfur, atingida pelo conflito – uma tarefa que demanda ainda mais padrões de segurança e negociações constantes no que diz respeito ao acesso à região.

Rets - Quantas pessoas estão trabalhando para a Cruz Vermelha no Sudão?

Reinhild Schumacher - Essa pergunta parece simples, mas é complicada. Por quê? Pois a Cruz Vermelha é um movimento, o que significa que é um esforço internacional de cooperação das unidades da Cruz Vermelha em cada país e das sociedades Red Crescent. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha é a agência que lidera e coordena as atividades da Cruz Vermelha e da Red Crescent. Eles também lutam pelo cumprimento da Lei Internacional Humanitária e da Convenção de Genebra. O Comitê Internacional trabalha com aproximadamente cem experts do mundo todo em Darfur. A Sociedade Espanhola da Cruz Vermelha está atuando em El Fasher no gerenciamento dos campos de IDPs. Atualmente dão apoio à Sociedade Sudanesa Red Crescent e aos IDPs, com três experts. A Sociedade Sudanesa Red Crescent é a sociedade nacional e conta com muitos voluntários trabalhando em diferentes setores, como saúde, desenvolvimento, distribuição de alimentos, administração e muitas outras tarefas. Eles são nossa entidade parceira aqui em El Fasher e estamos trabalhando juntos na coordenação das duas unidades de cuidados básicos de saúde e na recuperação das instalações locais de saúde. Nos nossos projetos de saúde, temos 55 colegas da Sociedade Sudanesa Red Crescent. E a Cruz Vermelha alemã? Somos três trabalhando aqui e esperamos a chegada de mais um delegado.

Rets - Por quanto tempo ficará em Darfur?

Reinhild Schumacher - Vim para Darfur em janeiro, como líder de equipe da Cruz Vermelha alemã em El Fasher. No final de março voltarei para a Alemanha e a minha missão terá terminado, embora eu não sinta que ela termine realmente aí, pois o conflito está acontecendo e as pessoas em Darfur ainda sofrem e dependem dos esforços conjuntos da comunidade internacional.

Maria Eduarda Mattar e Marcelo Medeiros

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