Autor original: Mariana Loiola
Seção original: Os mais interessantes e ativos projetos do Terceiro Setor
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Insatisfeitos com as limitações da mídia tradicional, jornalistas de Porto Alegre (RS) decidiram desenvolver um trabalho diferenciado e, em 1998, criaram a Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação (Alice). O objetivo era promover uma discussão crítica sobre a imprensa e incentivar projetos sociais ligados à comunicação. “Estávamos frustrados de não poder fazer matérias de modo mais aprofundado no jornalismo convencional. Queríamos fazer algo com um caráter mais social. Daí surgiu o nosso primeiro projeto – o jornal Boca de Rua –, com o objetivo de dar voz a quem não tem voz na mídia. Quando acontece de pessoas que moram nas ruas terem visibilidade e voz, é de forma rápida e superficial e, geralmente, nas páginas policiais”, diz Clarinha Glock, uma das supervisoras do jornal.
A idéia era que pessoas em situação de rua retratassem os temas relacionados à sua realidade e às suas experiências nas ruas – drogas, aids, moradia, educação, preconceito etc. – de forma jornalística. Assim, os jornalistas começaram a fazer reuniões com um grupo na Praça do Rosário, em Porto Alegre. “Oferecemos ferramentas para que eles desenvolvessem o trabalho, dissemos que fazer jornalismo era como narrar uma história e que o que eles tinham para dizer era importante. No início, ficaram desconfiados, pois esse grupo tinha participado de muitos projetos que não tiveram continuação”. Em janeiro de 2000, saiu o número zero do jornal Boca de Rua, com o apoio da Fundação Mauricio Sirotsky Sobrinho. Hoje, o Boca de Rua é filiado à International Network of Street Papers (INSP, da sigla em inglês para Rede Internacional de Jornais de Rua).
Da sugestão de pauta à venda
Vendido a R$ 1 nas ruas de Porto Alegre, o jornal é quase todo feito por pessoas em situação de rua, desde a sugestão de pauta, passando pela elaboração dos textos, até a venda (a receita obtida com os exemplares vendidos é revertida para elas). Algumas são semi-alfabetizadas, mas não deixam de participar de alguma forma, como na produção das fotos e ilustrações.
“O jornal é todo deles. Uma vez por semana nos reunimos com eles para discutir as pautas sugeridas, e eles correm atrás do resto. Fazem entrevistas entre si, com outros moradores de rua e instituições e as transcrevem. Depois corrigimos junto com eles os textos produzidos”, explica Clarinha. As instituições procuradas podem ser não-governamentais ou do serviço público – como no caso de uma matéria sobre a falta de camisinhas distribuídas nos postos de saúde. Apenas a edição ainda fica integralmente por conta dos jornalistas.
Atualmente, 30 adultos e cinco crianças e adolescentes participam do projeto. Para as crianças e os adolescentes – que se aproximaram do projeto por meio dos pais e pediram para participar também – foi criado, em 2003, um suplemento especial, o Boquinha. Os responsáveis pelas crianças e os adolescentes que participam da produção do jornal recebem uma bolsa-auxílio de R$ 10 por semana. O processo de produção do Boquinha é feito de forma mais lúdica: o desenho é mais explorado e, em vez de debates, organizam-se brincadeiras que giram em torno dos temas propostos.
Consciência cidadã
Clarinha acredita que o Boca de Rua abre um canal de comunicação entre essas pessoas e a sociedade, cria uma identidade de grupo que elas não tinham e provoca um aumento de auto-estima. “Não é um projeto só de geração de renda. Por meio desse trabalho, eles se dão conta de que são cidadãos e de como podem se informar mais e correr atrás dos seus direitos”. Para atender à demanda do grupo por mais informação, a Alice busca desenvolver parcerias com outras instituições, como o Grupo de Apoio à Prevenção à Aids (Gapa), que procura esclarecer as dúvidas do grupo sobre Aids.
No futuro, a Alice pretende investir na inclusão digital dos participantes do Boca de Rua. O site da entidade deverá sediar um link para o jornal. Outras atividades também deverão ser desenvolvidas para aumentar as chances de essas pessoas saírem das ruas, principalmente as crianças, de acordo com Clarinha. “As crianças têm mais possibilidade de sair da rua. Os adultos, muitas vezes, têm mais dificuldade, pois cresceram na rua e criaram um vínculo muito forte com ela”, diz. Essa constatação foi feita com o acompanhamento de psicólogos que integram a equipe do projeto. A proposta, no entanto, ressalta, não é tirar as pessoas das ruas. É fazer com que elas tenham um nível de consciência para saberem se querem sair mesmo dessa situação.
Produzir um jornal a partir do ponto de vista das pessoas em situação de rua é o grande diferencial do Boca de Rua e é o que o torna uma ótima fonte de informação, de acordo com Clarinha. “O Boca de Rua tem transformado não só a vida de pessoas que fazem o jornal, como também daquelas que o lêem. Depois de lerem o jornal, muitos nos procuram querendo contribuir”.
Mais informações sobre o Boca de Rua podem ser obtidas pelo correio eletrônico alicebr@bol.com.br.
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