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Lutas feministas no Brasil de 2005

Autor original: Viviane Gomes

Seção original: Artigos de opinião

Fátima Oliveira*






Lutas feministas no Brasil de 2005


O Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, em si, simboliza o iniciar de reparações do Estado brasileiro de sua incomensurável dívida para com a cidadania das mulheres. Enquanto sinalização de intenções, o Plano é singular, inédito até, e contém propostas (gestos) que apontam e exigem propósitos (atos). Concretizar o Plano no cotidiano de nossas vidas será uma outra luta, bem sabemos e estamos preparadas. O que exigirá de nós, as feministas, muita determinação para cobrar que as ações cheguem ao cotidiano das mulheres em cada Estado e em cada município.


Agora posso afirmar, sem medo de errar, que o governo Lula apresentou compromissos (propostas) para ampliação da cidadania das mulheres. Falta testar os propósitos (orçamento para concretização das políticas) e, esperamos, mas esperamos mesmo, que os "contigenciamentos" dos recursos para tais políticas não nos enrolem, mais uma vez. Mas isso só o tempo nos dirá.


É momento de celebração. O Plano apresentado, consegue contemplar  reivindicações feministas históricas de, pelo menos, dos últimos 30 anos... os 20 anos de sonho do PAISM (Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher), na medida em que incorpora, na totalidade, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Ministério da Saúde, 2004) e foi além, quando acatou a recomendação, aprovada na I Conferência Nacional de Políticas para Mulheres (I CNPM, julho de 2004), de revisar a legislação punitiva sobre aborto vigente no país desde 1940.


Assim sendo, as declarações corajosas, reafirmando que o Plano é a política do governo, sobretudo, a proposta de revisão da legislação punitiva sobre o aborto, das ministras Nilcéa Freire e Matilde Ribeiro e do ministro Nilmário Miranda, veiculadas pela imprensa, merecem nossos aplausos, sem dúvida, pois são três integrantes do primeiro escalão que não se escusam de demonstrar solidariedade para com a luta feminista pelo direito de decidir e que endossam o lema das Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro (Aborto: as mulheres decidem, a sociedade respeita e o Estado garante).


O que não é pouca coisa. Podemos dizer que não cumprem mais do que a obrigação. De fato, estão cumprindo uma obrigação. Todavia, cabe lembrar que poderiam não chegar a tanto, pois como integrantes de um governo de Coalizão Nacional, e uma presidência da República sabidamente vulnerável ao poder da Igreja Católica, não somos ingênuas de achar que a totalidade do conteúdo do Plano plane sobre o governo em céu de brigadeiro.


Portanto, precisamos dar demonstrações explícitas de apoio à ministra Nilcéa Freire nessa caminhada que agora se inicia, notadamente, no que diz respeito à instalação do "GT de revisão da legislação punitiva sobre o aborto". Só uma blindagem de apoio ostensivo e não vacilante do movimento social, particularmente do feminismo e de outros setores democráticos, manterá a ministra Nilcéa Freire com poderes no comando da revisão. Precisamos estar alertas na construção desse apoio. Ele não é apenas necessário como vital, na medida em que o propósito da revisão acena para a garantia do direito de decidir das mulheres.


Vivenciamos um momento histórico de nosso país. É a primeira vez, desde que o aborto foi criminalizado no Brasil (1830) que o Estado acena com a possibilidade de rever a legislação criminalizadora e punitiva, porque até hoje (2004) só ampliava a criminalização! Relembremos que até 1830 aqui não havia leis sobre o aborto, ano em que foi elaborado o Código Criminal do Império, que alocou o aborto no capítulo “contra a segurança das pessoas e da vida". No Código Penal da República (1890), o aborto praticado por terceiros passou a ser penalizado, se, com ou sem aprovação da gestante, dele resultasse a morte desta; o auto-aborto, visando “ocultar desonra própria”, a pena era reduzida; e a noção de aborto legal ou necessário foi explicitada apenas para salvar a vida da gestante. O Código Penal Código Brasileiro de 1940, elaborado no contexto do pós I Guerra Mundial, no contexto em que havia uma tendência ética mundial da condenação do estupro como arma de guerra, inscreveu o aborto nos “crimes contra a vida” e prescrevia pena de um a quatro anos para quem o realizasse em outra pessoa; e de um a três anos para o para o auto-aborto ou por consentir que outro o provocasse; manteve o aborto como crime que só não é punido se a gravidez é resultante de estupro e em caso de risco de vida da gestante.


Desde 1940, muitos foram os embates no legislativo com vistas à ampliação dos permissivos legais para o aborto, assim como para a sua descriminalização, mas será primeira vez que um governo apresentará uma proposta de legislação nesse sentido. É inegável que, considerando-se o contexto mundial de acirramento das idéias fundamentalistas, conseguimos impor uma derrota a elas!


O propósito de revisar a legislação punitiva sobre aborto explicita uma agenda obrigatória para consolidar a laicidade do Estado brasileiro e um compromisso com a ampliação das liberdades democráticas. O processo da  revisão em si, com vistas a remover o entulho criminalizador do direito de decidir, é uma pauta de ampliação da democracia e de justiça social. O governo brasileiro, temos dito e aqui repetimos, não pode mais continuar trilhando o caminho da crueldade, negando às suas cidadãs o acesso a um procedimento médico estabelecido e seguro, como o abortamento. Eis a linha orientadora que o GT precisa trilhar  para propor uma legislação que não apenas descriminalize o aborto, mas que assegure o acesso das mulheres ao procedimento no SUS.


A revisão da legislação criminalizadora do aborto é um compromisso ético do Estado brasileiro, assumido desde 1995, ou seja, desde o século passado que, com certeza, terá a sua concretização iniciada em janeiro de 2005, com a instalação do Grupo de Trabalho específico para a revisão, com a presença do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) e, a exemplo dos anteriores GT´s da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, deverá ouvir diferentes setores da sociedade, além do que deverá contar com uma consultoria especializada de renomad@s juristas.


O esperado é que o referido GT seja ágil e que em meados de 2005 tenha elaborado uma proposta que contemple o direito de decidir para ser enviada, pelo governo, à Câmara dos Deputados. Também precisamos exigir do governo o empenho para que a referida proposta seja  votada ainda em 2005. Não há motivos para esperar 2006, quando uma temática tão eivada de polêmicas, como a do aborto, com certeza não será apreciada por ser ano eleitoral. O "Ano D" é 2005, não nos enganemos. Enquanto isso, e desde já, o feminismo precisa estar alerta e fazendo o que sabe: trabalho duro e cotidiano em defesa dos direitos e da vida das mulheres, junto à sociedade, ao governo e ao Congresso Nacional.  Será um embate duro, doloroso e difícil, no qual as forças fundamentalistas, em âmbito mundial, estarão vigilantes e jogarão com todas as armas disponíveis, inclusive com muito dinheiro e perseguições pessoais. Mas hoje, celebramos uma derrota que impusemos às forças fundamentalistas mundiais. Isso não é pouco! A revanche está a  caminho...


A Rede Feminista de Saúde, que tem a  legalização do aborto como um dos seus princípios, envidará todos os esforços para contribuir para que esta luta seja vitoriosa. Entendemos, desde que o Lula ganhou as eleições, que deveríamos tentar construir em seu governo os espaços necessários para fazer avançar a luta pelo direito ao aborto. Sabíamos que não seria exatamente um passeio, como não tem sido (a gente se dana, se descabela, maldiz a vida, se arreta...mas de vez em quando é ouvida e até celebra, como agora), mas analisamos que teríamos as melhores condições que se apresentavam em toda a vida republicana. Portanto, não tivemos dúvida que chegara  a "hora H" e era emergencial que a Rede Feminista de Saúde se empenhasse, como apoio decisivo de praticamente todas as forças do feminismo brasileiro,  para estabelecer a articulação política que resultou na criação das Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, em fevereiro de 2004 e que teve a garra de elaborar e desenvolver um Plano Estratégico para a Legalização do Aborto no Brasil que previa também tensionar o governo rumo ao avanço.


Também não tenho dúvidas de afirmar que sem as “Jornadas”, que aglutina e mobiliza diversas forças políticas, não apenas o feminismo, que defendem o direito ao aborto, não estaríamos celebrando este caminho decisivo rumo ao direito ao aborto em nosso país, vide o papel que ela jogou nas preparatórias estaduais da I CNPM e na própria Conferência que, como bem sabemos, apresentou um Relatório Final para a apreciação da plenária que não contemplava a questão do aborto (conforme as recomendações vindas  de todos os Estados, exceto Minas Gerais), o que nos obrigou a uma batalha brutal para a inclusão da temática nas Resoluções da Conferência. E ganhamos isso no voto, a despeito da omissão do Relatório Final que foi apresentado na Conferência!


Ou seja, há muito trabalho feminista coletivo milimetricamente organizado e consciente, braçal e intelectual, ambos muito suados, por trás de tudo isso. Em outras palavras, ganhamos no voto a recomendação que obrigou o governo brasileiro a contemplar no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres um compromisso que data de 1995, assumido quando se tornou signatário da Declaração e da Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995)! De lá para cá são praticamente dez anos de peleja...


*Fátima Oliveira é médica e secretária executiva da Rede Feminista de Saúde, www.redesaude.org.br. Este artigo foi originalmente publicado no informativo Articulando, publicação da Articulação Brasileira de Mulheres (ABM), www.articulacaodemulheres.org.br






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