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Significado e desafios da Comissão Nacional da Verdade

Quando o debate público para a elaboração da 3ª edição do Programa Nacional de Direitos Humanos estava a caminho, em 2009, ocorreu a inclusão de um sexto “eixo orientador” – o Direito à Memória e à Verdade. Ironicamente, quase caiu no esquecimento. Desde maio de 2010 dormitava na Câmara Federal o projeto de lei 7376/10 indicando a criação da Comissão Nacional da Verdade – CNV, finalmente promulgada como Lei 12.528 em acordo de lideranças no final de 2011.“O trabalho de reconstituir a memóriaexige revisitar o passado e compartilharexperiências de dor, violência e mortes.Somente depois de lembrá-las e fazer seu luto,será possível superar o trauma histórico e seguir adiante.”(Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3)Quando o debate público para a elaboração da 3ª edição do Programa Nacional de Direitos Humanos estava a caminho, em 2009, ocorreu a inclusão de um sexto “eixo orientador” – o Direito à Memória e à Verdade. Ironicamente, quase caiu no esquecimento. Desde maio de 2010 dormitava na Câmara Federal o projeto de lei 7376/10 indicando a criação da Comissão Nacional da Verdade – CNV, finalmente promulgada como Lei 12.528 em acordo de lideranças no final de 2011. A Comissão foi de fato instalada em maio deste ano, com a indicação de 7 membros com a enorme responsabilidade de examinar e esclarecer em dois anos as graves  violações de Direitos Humanos ocorridas no Brasil entre 1946 e 1988 (referência a duas constituições democráticas), período que inclui a ditadura militar que durou penosos 21 anos.Comissões como essa fazem parte de um escopo recente do direito internacional, tendo como referência a história recente do pós-guerra, conhecida como Justiça de Transição - um processo peculiar de países que passaram por regimes autoritários e de violação de direitos humanos. Há mais de 40 casos de países que vivenciaram estes processos, especialmente na América Latina, Europa e África. Claro que o contexto histórico fez com que conhecêssemos mais de perto as experiências vividas pelos hermanos da Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai.Como cada país tem sua história e cultura política diferenciada, o formato de nossa CNV sofreu e sofre várias restrições por parte de comitês, fóruns estaduais e movimentos que reúnem familiares de desaparecidos políticos. Mesmo saudando a esperada iniciativa de um governo, cuja presidenta foi alvo direto de perseguição e tortura, seu alcance frustrou a expectativa de muitos, basicamente por não ter caráter punitivo – a realização plena da Justiça, o período histórico, considerado um diversionismo político, em parte desfocando o momento crucial da ditadura, o prazo de funcionamento, considerado insuficiente, e o pequeno número de titulares envolvidos.A explicação oficial se calça na argumentação dos acordos possíveis estabelecidos num congresso majoritariamente conservador, no fato de que o assunto, sendo tardio, tem baixo apelo na agenda política e, ainda, na reafirmação recente por parte do STF que abortou a tentativa de se rever a Lei da Anistia, reconhecidamente restritiva ao anistiar amplamente as partes envolvidas, incluindo os que praticaram “crimes conexos”.As preocupações são inegavelmente pertinentes, afinal, só o contencioso da ditadura civil-militar dá a dimensão da imensa tarefa depositada à equipe da CNV que, de imediato, contará com mais 14 assessores especiais. Alguns números são eloqüentes: 426 mortes e desaparecidos políticos, sendo 30 no exterior e 62 na repressão à Guerrilha do Araguaia; 50.000 prisões arbitrárias; 20.000 torturados; 10.000 exilados; 10.034 atingidos por inquéritos policiais; 700 mandatos políticos cassados; 3 ministros do STF afastados. Números subestimados.A prática, contudo, tem demonstrado a relatividade dos questionamentos graças, principalmente, ao funcionamento de outros mecanismos que vêm potencializando a CNV, situação inclusive prevista na lei que a criou, com destaque para a atuação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, de 1995, e a Comissão da Anistia, criada em 2001, que trata da caracterização e reparação de mortos e perseguidos políticos durante a ditadura. Ao todo, somam 70.000 processos, dos quais 50.000 já foram julgados – indício da eficácia e compromisso dos componentes, em caráter paritário, que a compõe.Tais mecanismos associados a outras iniciativas como a constituição de comitês e fóruns estaduais da Verdade e outras mais informais no seio da sociedade contribuem para a formação de uma nova cultura política e de pressão para que a comissão alcance seus propósitos.No espaço restrito deste artigo, vale ressaltar, efeitos relevantes decorrentes da própria dinâmica e tensionamento dentro da comissão como reflexo mobilização social. O primeiro deles tem a ver com o objeto das ações que serão exclusivamente sobre os agentes públicos incrustados nas instâncias do estado, especialmente nos órgãos de repressão, dissipando assim, a falsa questão de existirem “dois lados” nas violações por ser uma “guerra” – tentativa saudosista orquestrada por antigos chefes militares, juristas e outros grupos identificados com o golpe militar.Também vale mencionar os processos mais recentes que correm no Judiciário por ação de familiares e vítimas incriminando o Coronel Ultra, ainda vivo e um dos principais responsáveis pela criação e funcionamento dos centros de tortura (família Teles), do famigerado Coronel Curió (por familiares cujos militantes foram executados durante a Guerrilha do Araguaia).  Ainda, o emblemático caso do jornalista Vladimir Herzog, cuja certidão de óbito será alterada por decisão judicial para  "a morte decorreu de lesões e maus-tratos sofridos em dependência do II-Exército - SP (DOI-Codi)". O juiz da 2ª Vara de Registros Públicos de São Paulo acatou um pedido da viúva de Herzog, Clarice, e da Comissão da Verdade.Outro dado estimulante e que reflete a sensibilidade da CNV foi considerar os crimes e violações aos Direitos Humanos de populações, ultrapassando o sentido estrito de grupamentos políticos que se organizaram clandestinamente para travar luta política e ideológica, por meio da resistência armada ou não. Já acolheram como objeto de investigação, a situação de 1.118 camponeses assassinados no período definido (e neste caso valeu ampliar o período para além daquele vigente da ditadura) e dos 2.000 indígenas do povo Waimiri Atroari que desapareceram ao opor-se à construção da Br 174 que liga Manaus e Boa Vista. Para a inclusão de processos tão complexos e não previstos como estes, a comissão deverá indicar equipes especiais em parceria com outros organismos públicos ou não, mas com reconhecida folha de serviços prestada no assunto.A comissão, como era de esperar, já manifestou especial atenção com a Operação Condor – articulação entre aparelhos repressores do Brasil, Argentina, Uruguai e Chile. A esse respeito, um dos componentes, Paulo Sérgio Pinheiro lembra que “o Brasil foi muito esperto, não deixou muitas marcas, não assinava acordos informais nesse sentido” – daí porque para ele a cooperação com esses países será fundamental para conseguir informações. DESAFIOSUm interessante desafio se dá no campo mesmo das Forças Armadas. Não deixa de ser surpreendente o fato de que mais de 7.000 militares sofreram punições e desligamentos o que contribuirá para superar eventual mal estar na apuração dos casos e da pecha de revanchismo alimentado por uma minoria.No final de julho, aconteceu uma ampla audiência entre a Comissão Nacional da Verdade e os comitês e fóruns estaduais e grupamentos que reúne familiares de desaparecidos políticos. Aquela plenária produziu um manifesto identificando enfoques e temas a serem priorizados e certeza que será enfaticamente monitorada pela sociedade civil. No encontro foram destacados alguns desafios: retomada da luta pela revisão da Lei da Anistia, levando em conta a ação de condenação do governo brasileiro pela OEA em relação às vítimas da Guerrilha do Araguaia e, ainda tramitando, o caso Herzog; um estudo mais sistemático sobre as bases de sustentação da Ditadura civil militar e a responsabilização de forças externas, tendo como um dos elementos o real alcance da Operação Condor; a identificação de personalidades, parlamentares, entidades conservadoras e empresários na provocação e sustentação do golpe militar. A problematização do projeto político-pedagógico ainda dominante nas escolas e academias militares onde são ensinadas “antigas lições”.  Aos movimentos sociais, a capacidade de mobilizar e criar fatos de interesse da sociedade visando colocar o tema da memória, da verdade e da justiça na agenda política brasileira, valorizando sobremodo o envolvimento da juventude e das redes sociais.Entre as alternativas está a de aproximar-se das redes públicas de ensino, dos movimentos estudantis e iniciativas político-culturais a exemplo dos “escrachos” proporcionados em momentos e situações emblemáticas como as do movimento Levante Popular da Juventude.Por Eliana Rolemberg, da CESEFonte: Abonghttp://abong.org.br/informes.php?id=5710&it=5718

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