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Ongs e o mercado: uma aproximação perigosa

Autor original: Maurício Jun Handa

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As organizações voluntárias, independentes do Estado e de caráter filantrópico, têm sua existência comprovada há vários séculos, embora na sua feição moderna, somente após a II Guerra Mundial foram denominadas de Organizações Não-governamentais (ONGs), na nomenclatura do sistema de representação das Nações Unidas, por possuírem relevância suficiente para justificar sua presença formal nos diversos órgãos internacionais, mesmo não sendo governamentais.


A filosofia que permeia a ação destas organizações é o desejo humano de ajudar outras pessoas, sem que necessariamente se obtenha algo em troca. Tal concepção baseia-se no conceito de gestão social, o qual, segundo Tenório (1998) , caracteriza-se por "um gerenciamento mais participativo, dialógico, no qual o processo decisório é exercido por meio de diferentes sujeitos sociais".


Assim, com origem ou sustentação no entorno da gestão social, a estrutura organizacional das ONGs foi construída tendo como referência as seguintes orientações institucionais originais:



  1. as fortes orientações ideológicas, caracterizadas principalmente pelas concepções do Welfare State (Estado de Bem Estar Social) que surgiram com a cooperação internacional, logo após a II Guerra Mundial;

  2. as orientações religiosas, principalmente vinculadas à Igreja Católica e às Igrejas Evangélicas;

  3. as idéias desenvolvimentistas, baseadas no modelo de desenvolvimento preconizado pela cooperação internacional;

  4. o voluntariado, com a utilização de mão-de-obra não remunerada para execução das atividades básicas da organização;

  5. a informalidade da ação, onde não se dava importância para o planejamento prévio das atividades, tampouco para a organização administrativa dos processos desenvolvidos;

  6. a independência em relação ao Estado e ao mercado, ou seja, o distanciamento e autonomia em relação à imposição governamental e principalmente à manipulação das empresas lucrativas;

  7. a igualdade e participação democrática na gestão dos processos administrativos, com ampla participação dos stakeholders, doadores, militantes e funcionários, nos processos de tomada de decisão e execução dos programas;

  8. o caráter reivindicativo e denunciador, caracterizado por uma postura crítica e propositiva em relação às políticas públicas e à ação governamental.

Portanto, as ONGs constituíram-se em organizações não funcionais e distintas, que não se adequavam aos modelos clássicos de organização e às teorias gerenciais, essencialmente desenvolvidas para organizações de caráter público ou privado.


Nas duas últimas décadas, uma onda de mudanças constantes e de transformações nas esferas política, social, econômica e cultural, ocorreu em todo o mundo, obrigando as ONGs a experimentarem sucessivos ajustes organizacionais na sua estrutura e prática de intervenção na sociedade. Tais ajustes organizacionais são entendidos como mudanças ocorridas na estrutura e no contexto organizacional das ONGs, as quais indicam uma tendência de reprodução das modernas práticas gerenciais próprias das empresas lucrativas.


Os ajustes organizacionais levam a uma transição ideológica das ONGs, do conceito de gestão social para o conceito de gestão estratégica que, segundo Tenório, "é um tipo de ação social utilitarista, fundada no cálculo de meios e fins e implementada através da interação de duas ou mais pessoas, na qual uma delas tem autoridade formal sobre a (s) outra (s). Esta transição tem provocado alterações conceituais nas orientações institucionais originais das ONGs, tornando-as mais funcionais dentro de uma lógica imposta principalmente pelas regras atuais do mercado.


Progressivamente, a capacidade de pressão e mobilização social das ONGs, de reivindicação e proposição de novos caminhos tem se enfraquecido, cedendo lugar à pressão pela profissionalização da sua estrutura e das ações desenvolvidas, adquirindo um caráter mais de prestação de serviços ao Estado e ao mercado. Muitas vezes, tal profissionalização representa apenas uma inserção, sem análise crítica, nas modernas práticas administrativas sendo absorvidos, inclusive, os jargões administrativos das empresas privadas, sem contudo esta postura representar avanços significativos na prática social das ONGs.


A adoção das modernas práticas gerenciais, próprias das empresas lucrativas, e o uso intenso de tecnologias de informação, têm provocado o enfraquecimento dos princípios de igualdade e participação democrática nos processos de tomada de decisão das ONGs. Cada vez mais os fluxos decisórios tornam-se mais hierarquizados, e a participação condicionada ao nível de responsabilidade da pessoa, em razão da função exercida.


O aumento da dependência em relação aos recursos governamentais, às fontes multilaterais e às empresas lucrativas, pode gerar nas ONGs a perda crescente de sua autonomia em relação ao Estado e ao mercado, fazendo com que as mesmas constituam-se meramente em prestadoras de serviços ou intermediadoras na relação doador e beneficiário.


A capacidade crítica, denunciadora e propositiva das ONGs, tem dado lugar a uma postura de negociação dos recursos necessários à sobrevivência organizacional, tendo na maioria das vezes que concordar com a agenda de trabalho imposta pelos financiadores. A tendência predominante entre as ONGs é a setorização das ações de advocacy (defesa de direitos e cidadania), tornando-as responsabilidade apenas de um setor ou departamento da organização, sem influência sobre o todo. Assim, pode-se concluir que quanto maior o nível de dependência financeira e das alianças estratégicas constituídas com o Estado e o mercado, menor será o caráter reivindicativo e denunciador.


Os valores originais das ONGs (altruísmo, ajuda mútua, solidariedade, direito à livre expressão e organização, etc.) estão sendo progressivamente substituídos por valores de mercado (competição, excelência empresarial, profissionalismo, individualismo, pragmatismo, foco nos "clientes", eficiência, eficácia e efetividade). Em contraponto, as ONGs buscam fortalecer o sentido de missão institucional e a vivência dos valores organizacionais professados, como forma de garantir a preservação de sua identidade enquanto ONG e, conseqüentemente, de sua sobrevivência organizacional. É possível ainda observar alterações conceituais ocorridas nas referências ideológicas das ONGs, aproximando-as da tendência do pensamento único (neoliberalismo), como também no voluntariado, tornando-o mais profissional e especializado, e ainda nas idéias desenvolvimentistas, cujo modelo de desenvolvimento agora seria norteado pelas regras do mercado. Segundo esta lógica, a redução da pobreza e a eliminação das mazelas sociais estariam diretamente relacionadas à eficácia do modelo econômico adotado pelo país.


As considerações contidas neste artigo podem ser relacionadas a uma linha de pensamento da sociologia, cujo mentor, Jürgen Habermas, pensador contemporâneo da escola de Frankfurt, defende que existem apenas dois pólos orientadores das tendências organizacionais: o Estado e o mercado. Segundo essa linha de pensamento, todos os modelos organizacionais podem ser referenciados entre estes dois pólos, contendo mais elementos de um ou de outro. Neste sentido, as próprias ONGs estariam fadadas a assimilar características de um ou outro pólo, conforme o contexto e as condições históricas.


Embora os indicativos contidos neste artigo sobre a tendência de desfiguração do caráter institucional original das ONGs, possam parecer por demais fatalistas, na verdade, a finalidade do mesmo é alertar os gestores e militantes das ONGs para a necessidade de se construir referenciais teóricos organizacionais próprios para o Terceiro Setor, composto por organizações não governamentais, filantrópicas e voluntárias, que possam caracterizá-lo como um terceiro pólo organizacional distinto, em que ocorreria uma nova e permanente forma de manifestação institucional da sociedade civil moderna. Sem prejuízo à capacidade de percepção crítica dos fenômenos organizacionais, nunca é demais acreditar numa reversão da tendência contemporânea das ONGs de submissão às regras de mercado, e torná-las organizações criadoras de novas idéias de transformação e utopias sociais.


*João Helder Diniz é Mestre em Administração de Empresas pela UFPE - Universidade Federal de Pernambuco e é gerente de Desenvolvimento Econômico da ong Visão Mundial (World Vision), sendo responsável pela execução de programas de microfinanças urbano e rural, comércio justo, educação profissional e implantação de empresas comunitárias.


Este artigo é baseado nas conclusões de sua dissertação de mestrado : O Reflexo dos Ajustes das Organizações Não-governamentais Internacionais – ONGIs, às Modernas Práticas Administrativas, sobre o seu Caráter Institucional-original.

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